ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
O Ave Maria foi tema objeto de grande atenção no projeto de estudos culturais e musicológicos desenvolvido a partir de 1974 na Eurpa. O objetivo desse projeto foi o de contribuir ao desenvolvimento de estudos culturais de condução musicológica e, reciprocamente, de uma musicologia orientada segundo estudos culturais em contextos globais. O projeto deu continuidade a estudos anteriormente realizados no Brasil desde a década de 1960. Os trabalhos em cooperações internacionais partiram de fontes descobertas em pesquisas realizadas no Centro de Pesquisas em Musicologia em São Paulo.
O projeto foi sediado no Instituto de Musicologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de Colonia e conduzido em estreitas colaborações com pesquisadores do Brasil, de Portugal, da Alemanha e de outros países, assim como de instituições eclesiásticas. Colonia, principal centro catolíco da Alemanha e um dos principais da Europa, oferece condições particularmente favoráveis para o desenvolvimento de estudos mariológicos. Muitos desses estudos foram desenvolvidos na biblioteca da Arquidiocese de Colonia a partir de 1975.
Significado
O Ave Maria é, com o Pater Noster, a oração mais praticada em países marcados pelo Catolicismo como o Brasil. Ela é rezada ou cantada no culto, no ofício das horas, em atos devocionais, repetida várias vezes no rosário, pronunciada por muitos na vida do dia-a-dia, marca o eia com a sua hora do Ave Maria, exigindo assim atenta consideração nos estudos culturais, também sob o aspecto sócio-psicológico. Aprendida desde cedo, no início da formação religiosa em família, em sociedade e no catecismo, os sentidos do Ave Maria são interiorizados, condicionando mental e psiquicamente os indivíduos.
O Ave Maria não pode deixar de ser considerado nos estudos musicais. Foi tratada por muitos compositores, sendo incontável o número de composições do Ave Maria, de diferentes épocas e estilos. Muitos foram os compositores do século XIX que se dedicaram ao Ave Maria, entre êles Franz Schubert, Gioacchino Rossini, Franz Liszt, Georges Bizet, Anton Bruckner ou Giuseppe Verdi e muitas dessas obras tiveram grande difusão, marcando repertórios e a vida musical de países de outros continentes. Trata-se de um repertório com características próprias de expressão, muitas vezes levantando questões estéticas como o extraordinariamente popularizado Ave Maria de Bach/Gounod, por suas versões marcadas por um excessp de sentimentalidade, por ter sido incluída em óperas ou interpretadas por cantores de música popular.
O Ave Maria não pode ser considerado apenas historicamente ou delimitar-se ao estudo da antífona gregoriana, ainda que esta seja de fundamentall. O seu estudo exige uma compreensão ampla dos objetivos dos estudos musicológicos, voltados ao exame da inserção e do papel desempenhado pela música em processos culturais, por uma visão que ultrapassa delimitações do erudito e popular, de esferas sociais e culturais. O seu estudo exige que a música seja compreendida como princípio condutor de análises culturais.
Ensinada no início de atividades missionárias desde o início da história colonial, o Ave Maria desempenhou fundamental papel na cristianização de povos, de indígenas e africanos, atuando em processos de mudança cultural e de sua integração na sociedade dominante. Sendo rezada no rosário, em práticas devocionais, contribui à criação de uma atmosfera de introspecção, fomentadora de uma situação de receptividade correspondente àquela de Maria ao receber a anunciação.
Ave Maria e Santa Maria
O Ave Maria, diferentemente de outros cantos marianos, é uma anunciação - uma anunciação angelical, cujos sentidos hínicos constituem referências para outros cantos. Diferenciações devem ser feitas à oração no seu todo, que é constituído de duas partes, a anunciação angelical e o Santa Maria. Esta segunda parte, adjuntada no século XVI, época marcada por conflitos, perigos, pelos riscos das viagens de descobrimentos e contatos com outros povos, não é angelical, mas é canto daquele que se dirige a Maria com o pedido que rogue a Deus e que o ampare no presente e na hora da sua morte.
Dois contextos temporais e situações aqui se relacionam, o da Anunciação de início e o de Maria assunta após a sua morte, advogada e protetora. O Santa Maria não deixa de ter implicações para a interpretação de sentidos do Ave Maria que o antecede. Dirigindo-se a Maria já como intercessora e assim já na atualidade de sua presença nos céus e assim após a sua assunção, a menção de ter sido mãe de Deus, estabelece retroativamente a perspectiva para a compreensão de sentidos da aniunciação do anjo, Expressões como cheia de graça e bendita sois vós entre as mulheres, exigem onsiderações atentas sob o ponto de vista de uma antropologia cristã. O conceito de graça (charis) passa a exigir particular atenção nos estudos dessa oração.
A linguagem de imagens, inerente ao texto, marca visões, mentes estados psiquicos. O relato da saudação do anjo Gabriel a Maria na Anunciação suscita visualizações. As relações com concepções musicais evidenciam-se na decorrência que se segue. No encontro com Isabel, Maria entoa o Magnificat - Magnificat anima mea Dominum - o canto por excelência de Maria. É ela, aqui, a cantora.
O Ave Maria no século XIX
Os estudos do Ave Maria foram marcados por uma focalização especial do século XIX. A tomada de consciência da necesidade de reconsiderações desse século na musicologia, disse respeito em particular à música sacra perante as consequências das mudanças de concepções e práticas decorrentes do Concílio Vaticano II no Brasil e na Europa.
O século XIX, que foi não só o século de extraordinários desenvolvimentos técnicos e científicos, da industrialização, de expansões e do mundo de trabalho nas grandes cidades, mas também o da restauração, do movimento anti-secularizador e restaurativo eclesiástico, passou exigir exames mais diferenciados e revisões quanto a concepções e procedimentos. Foi um século de extraordinária intensificação do marianismo. Foi o século do Cioncílio Vaticano I, da dogmatização da imaculada conceição, dos aparecimentos milagrosos de Maria que marcaram regiões, instituições religiosas, educandários e a religiosidade poipular.
Composições do Ave Maria desempenharam papel significativo na vida religioso-musical em contextos marcados por intuitos anti-secularizadores e do anti-modernismo do século XIX. Várias dessaas obras foram criadas por músicos que se inseriram em correntes de recuperação de uma religiosidade que era vista como enfraquecida, de formas de culto consideradas como exteriorizadas, de modos de vida e costumes não condizentes com as prescrições morais da Igreja. Esses intuitos retroatiavos do século da Restauração foram fomentado por autoridades eclesiásticas e religiosos conservadores e tiveram um cunho corretivo, re-educador, anti-liberal, anti-secularizador e retroativo. Foram reacionários no sentido em que agiram em reação a desenvolvimentos remontantes à época do Esclarecimento, que tinham levado à expulsão dos Jesuítas e à supressão de ordens religiosas.
O Ave Maria, rezado ou cantado, foi promovido em atos religiosos, nas famílias e no ensino, sobretudo também nos educandários femininos. O Ave Maria foi tratado em publicações várias, ilustrações e em periódicos, como aquele que, no Brasil, foi explicitamente denominado de Ave Maria. É nesse contexto que se compreende o grande número de compositores que trataram musicalmente a oração.
No século que foi também o do Romantismo, as representações visuais e o tratamento musical do Ave Maria adquiriram um cunho sentimental, o que se revela nas muitas composições do Ave Maria que desde então surgiram. O canto do Ave Maria em casamentos tornou-se generalizado.
O reestabelecimento de ordens religiosas na França e em outros países após o Congresso de Viena teve consequências para o Brasil, pois foram sobretudo religiosas dessas ordens que foram trazidas como irmãs de caridade, por autoridades eclesiásticas para a re-educação religiosa através da sua atuação em famílias e no ensino. Assim como na França e em outros países, essa formação religiosa de novas gerações, sobretudo de meninas como futuras mães e esposas servia à instauração ou restauração de um ambiente familiar impregnado de religiosidade.
A atuação de irmãs de caridade dava-se sobretudo por meios suaves, pela afetividade, pela conquista de corações. A música, na sua capacidade de mover afetos, tornou-se importante agente nesse processo de reinstauração religiosa. É significativo que em cidades que se tornaram focos irradiadores da ação re-educadora religiosa através da ação de ordens missionárias, entre elas sobretudo dos Jesuítas, compositores se dedicaram com especial afinco à composições do Ave Maria.
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Desenvolvimento dos estudos
A literatura religiosa, teológica e sacro-musical no Brasil contém numerosos textos que tratam do Ave Maria. Largamente difundidos, marcaram concepções e visões em diversas áreas de conhecimentos, também em âmbito secular. Eles próprios porém se inseriram em processos histórico-eclesiásticos, orientaram-se por pronunciamentos e prescrições romanas, devendo ser considerados na sua historicidade.
Na década de 1960, marcada pelo Concílio Vaticano II e sua repercussão no Brasil, a literatura sacro-musical pré-conciliar passou a ser percebida como pertencente ao passado. O reconhecimento da necessidade de renovação de perspectivas e procedimentos nos estudos histórico-musicais e culturais em geral deu origem a movimento que procurou a superação de um modo de pensar estreito através de um direcionamento da atenção a processos.
Essa orientação marcou as reflexões nos trabalhos do Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão, originado em São Paulo. Nele criou-se um círculo de estudos do canto gregoriano e da música sacra em geral, no qual o Ave Maria foi estudado nas suas inserções em processos histórico-culturais e do papel que neles exerceu através das décadas.
O direcionamento da atenção ao século XIX trouxe à consciência o papel desenvolvido pelas ordens religiosas através do ensino a serviço da re-intensificação religiosa da sociedade. Entre elas não se pode deixar de considerar aquelas surgidas no próprio século XIX, entre elas a dos Salesianos de Dom Bosco. Inserida pelas suas origens em processos histórico-culturais e religiosos da Itália do século XIX, os seus religiosos marcaram a formação de gerações através de suas instituições de ensino. Nessas pesquisas, constatou-se o significado da oração, cantada ou rezada nas atividades das Salesianas da comunidade das Filhas de Maria Auxiliadora (Figlie di Maria Ausiliatrice/Congregatio Filiarum Mariae Auxiliatricis), atuantes sobretudo na formação de meninas e jovens.
Para estudos de obras de compositores brasileiros, realizaram-se pesquisas de arquivos em São Paulo e em várias cidades do Estado. As muitas composições levantadas do século XIX foram examinadas sob diversos aspectos, considerando-se as suas inserções em processos epocais e regionais. A difusão de composições européias, assim como o emprêgo do Ave Maria do repertório lírico no culto foram alguns dos aspectos considerados.
O significado da linguagem das imagens que o texto revela levou a que o Ave Maria fosse objeto de reflexões estéticas. Representações de Maria e sobretudo do canto do Ave Maria dos séculos XIX e XX deram ensejo a reflexões concernentes ao trivial e ao kitsch na estética em geral e suas implicações éticas. Essa temática foi tratada na área da Estética em diferentes ocasiões e contextos, também em cursos superiores de Estética e Etnomusicologia do Instituto Musical de São Paulo entre 1972 e 1974.
O Ave Maria na obra de compositores brasileiros
O mais renomado vulto da história da música do vale do Paraíba do século XIX e que atuou por décadas no XX na cidade de São Paulo, João Gomes de Araújo (1846-1843), foi também o compositor do Ave Maria de maior envergadura do repertório da região. Essa obra pode ser considerada como de transição em processos de transformação da linguagem musical em época de intensificação de tendências religiosas restaurativas. Composta para a festa do Divino, foi escrita explicitamente para ser cantada em missa solene no domingo de Pentecostes em Pindamonhangaba antes da Homilia, ou seja, da pregação e seus sentidos educativos. O compositor manteve-se durante toda a sua vida estreitamente vinculado aos Salesianos em São Paulo, sendo assíduo colaborador da revista Ave Maria através de composições regularmente publicadas.
O compositor, compondo-a para a festa do Divino, insere-se na tradição do uso do Ave Maria como ária ou solo ao pregador. O Ave Maria substitui o hino Sacris solemnis, também designado como recitado ao pregador do repertório mais antigo da região.
A designação de ária salienta esse característica solística e o sentido de expressão de sentimentos ou afetos que caracteriza composições, assim como a sua proximidade ao canto lírico. Essas interações, complexas em diferentes sentidos, constituiram temas de reflexões sobre processos difusivos recíprocos entre esferas do secular e do que é visto como sacral como no caso de composições do Ave Maria de Antonio Carlos Gomes (1836-1896), de músicos que se sobressairam na música para teatro e militar, como Henrique Alves de Mesquita (1830-1906) ou para uso doméstico, como Arnaud Gouveia (1865-1942).
Intensa dedicação ao Ave Maria pode ser constatada na produção musicall de compositores de cidades particvularmente marcadas pelo restauracio nismo católico, como Itú e sua região, onde compositores como Elias Álvares Lobo (1834-1901), José Mariano, Tristão Mariano da Costa deixaram obras que surgem como particularmente relevantes no repertório do Ave Maria.
O Ave Maria e processos criadores
Nesses estudos, constatou-se o significado da melodia em composições do Ave Maria e no processo da produção musical. Mesmo aqueles que compunham ao piano, o que se tornou cada vez mais generalizado, partiam de uma inspiração melóidica. Esse procedimento pode ser documentado em composições que permaneceram inacabadas de compositores como Elias Álvares Lobo e outros compositores do contexto ituano, como José Mariano.
Uma das obras de José Mariano, projetada para ser de ampla envergatura, com grande aparato orquestral acompanhando solo marcado por expansões de virtuosidade vocal, somente a parte solista encontra-se completa. As partes instrumentais acham-se anotadas apenas no início da composição ou em momentos que se relacionam mais estreitamente com o desenvolvimento melódico, em intercalações em pausas do solista. Nesse procedimento revela-se o significado de da inspiração na criação musical que pode ser documentada em relatos sobre o processo de criação musical em cartas e depoimentos.
O Ave Maria em processos de difusão e popularização
Os estudos de processos difusivos compreendem também aqueles de popularização de composições do Ave Maria, como aquela de Erotides de Campos (1896-1945), de Cabreuva, cidade vizinha de Itú. Da obra desse compositor, que atuou também em outras cidades, como Piracicaba, considerou-se com particular interesse um Ave Maria composto para duo de solistas, o que surge como singular perante o sentido do texto.
Para estudos de difusão musical, a divulgação ampla de composições como o Ave Maria de Schubert, em geral na transcrição de Stephan Heller, surge como significativa. Foi favorecida pela sua difusão através de filmes como na Symphonia Inacabada (Cine-Allianz), cantada por Martha Eggerth (1912-2013) e publicada pela Casa Bevilacqua do Rio de Janeiro (Nr. 1136).
O Ave Maria em contextos latino-americanos
Como lembrado em projeto então em andamento sobre as Culturas Musicais da América Latina no século XIX, vários compositores latino-americanos dedicaram-se ao Ave Maria. A partir das fontes levantadas no Brasil, procurou-se considerar essa grande produção latino-americana nas suas relações com processos missionários e da atuação de ordens religiosas no ensino, em particular feminino, assim como nos seus efeitos na sociedade.
O significado do Ave Maria no contexto restaurativo do século XIX e suas extensões no XX surge como paradoxal. Justamente em movimento que pretendia restaurar uma música sacra vista como adequada e digna através do afastamento de tudo quanto era teatral e melodramático, o Ave Maria tratado em óperas passou a ser cantado nas igrejas.
Desenvolvimentos subsequentes
A temática foi discutida nos preparativos de trabalho de doutoramento no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia e foi considerada em tese sobre a música sacra em São Paulo no século XIX defendida em 1979. Com base nesses estudos, realizou-se o I Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira em 1981, quando então fundou-se a Sociedade Brasileira de Musicologia.
O desenvolvimento dos estudos exigiu a consideração do estado das pesquisas mariológicas, intento favorecido pelo estabelecimento de centro de pesquisas do instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos vinculado à Consociatio Internationalis Musicae Sacrae e ao Istituto Pontificio di Musica Sacra junto à abadia de Maria Laach em 1977. Encontros dedicados á reflexão sobre temas do marianismo na música foram tratados em outros centros do culto e dos estudos marianos, assim como em congressos e simpósios.
O Ave Maria foi considerado em contextos globais nos estudos lusófonos a partir da fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS) em 1985. Foi tratado em simpósios, aulas e seminários, entre êles nas universidades de Bonn e Colonia.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.