ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
O Credo foi um dos principais temas considerados jno projeto musicológico e de estudos culturais desenvolvido na Europa desde 1974. Esse projeto deu continuidade em âmbito internacional a pesquisas e estudos realizados no Brasil desde a década de 1960. O seu objetivo foi o de contribuir ao desenvolvimento de estudos culturais a partir da música e, reciprocamente, de uma musicologia orientada segundo procesos culturais em contextos globais. O projeto foi sediado no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia e desenvolvidos em cooperações com pesquisadores de várias instituições universitárias e eclesiásticas do Brasil e da Europa.
Um momento importante no seu desenvolvimento foram estudos realizados por ocasião da Semana Santa em Roma, em março de 1975.
Significado
Os estudos do Credo sob a perspectiva dos estudos culturais exigem que se considere primeiramente a sua especificidade, os sentidos e funções que o definem. É essa especificidade que deve ser considerada quando o Credo é rezado, só ou acompanhado por orações e, sobretudo, como parte do Ordinarium, ou seja, das partes constantes ou invariáveis na estruturação da missa.
O Credo diferencia-se de outras partes do Ordinarium, não devendo ser considerado indiferenciadamente do Kyrie, Gloria, Sanctus ou Agnus Dei, e muito menos daqueles concernentes ao Proprium, as partes que mudam em função dos sentidos das datas celebradas, de domingos e festas do calendário.
O Credo sempre exigiu e suscitou estudos a mais aprofundados das relações e interações religiosas nos primeiros séculos da era cristã e que constituiram pressupostos para o Concílio de Nicéia sob Constantino I no ano de 325. Já esses estudos trazem à consciência que a sua consideração apenas pode ser conduzida em contextos globais.
O Credo, Simbolo nicano-constantinopolitano, pode ser substituído em determinados tempos, - como na quaresma e no tempo pascoal -, pelo Símbolo Batismal ou dos Apóstolos. É afirmado em batizados. Serve para a reafirmação do estar-se convicto, de renovação e solidificação de fidelidade, sendo assim também pronunciado à hora da morte. Pré-condição para procedimentos adequados é a consideração de estudos referentes á sua história através dos séculos, marcada por diferenciações quanto a significados de conceitos e expressões.
Nos estudos culturais e musicológicos surge como fundamental partir da constatação de que o Credo é uma confissão, uma declaração. Deve ser analisado musicalmente sob outras perspectivas daqueles que conduzem estudos de outros textos, de outras partes do Ordinarium ou de hinos, ladainhas, imprecações, aclamações, preces jaculatórias, cantos de louvor ou orações cantadas em geral. A sua entoação, em geral pelo sacerdote, traz à consciência de que o texto parte daquele que o pronuncia, individual ou coletivamente.
Os estudos musicológicos não podem limitar-se a análises estilísticas que, indiferenciadamente, não considerem essas características do Credo como declaração, confissão e afirmação de convicção, uma vez que determinam o tratamento do texto e a linguagem musical. É nesse contexto que se revela o significado do estudo do Credo sob o aspecto cultural, sócio-psicológico e de condicionamentos mentais. Como declaração, manifestação assecurativa do crer em concepções que fundamentam a cristandade, diz respeito à inserções num todo, à auto-consciência, a sentimentos de lealdade e a questões de identidade.
Esse sentido do Credo não pode deixar assim de ser considerado nas análises musicais de condução cultural. Deve-se ter presente que a linguagem musical apropriada ao texto com caráter declaratório não é a aquela marcada por expressões laudatórias, líricas ou dramáticas, por manifestações de estados de alma, de sentimentos e emoções, por subjetividade, mas sim pela objetividade. O texto é pronunciado, em voz alta ou mentalmente, recitado ou tratado musicalmente com clareza e precisão.
O compositor, ao criar a música para o texto do Credo, a escreve atentando para essa sua função. O texto, não a música é o que conduz primordialmente o processo criador. A música, que movimenta afetos como reconhecido por antigos teóricos, não tem aqui o predomínio, mas serve antes como suporte ou procede em íntima relação com as palavras, serve à entoação, não interrompendo a fluidez e precisão do discurso. Isso não impede certamente discretos auxilios declamatórios ou retóricos. Compreende-se aque muitos compositores do passado escreveram obras independentes para o Credo. A substituição de partes do texto por composições instrumentais deu compreensivelmente ensejo a críticas no passado.
Declaração assecurativa em processos culturais
A declaração do Credo foi não só de significado para os catecúmenos no passado, como também para os povos que foram cristianizados no contato com europeus ou por missionários desde a época dos Descobrimentos. Estes, com o batismo, integraram-se também em contextos e processos de antigas proveniências. A afirmação de que a cristianização, na sua universalidade, tem apenas dimensões espirituais, não significando inserções em processos históricos contextualizados historicamente, não pode ser corroborada. O Credo que passou a ser declarado por indígenas e africanos no Brasil e em outras regiões colonizadas possui dimensões amplas de pertencimento a uma comunidade a partir de seus fundamentos.
Uma consideração atenta do Credo e de seus tratamentos musicais em obras do passado do Brasil, de Portugal e de outros países não é assim apenas de interesse para estudos da religião e da música, como também para estudos culturológicos em geral, sobretudo para aqueles voltados a condicionamentos culturais, mentais e psicológicos. Ao declará-lo, nem sempre tem-se consciência de que se reafirmam concepções e intenções de remoto passado, que se mantém no presente uma atitude auto-distintiva e de diferenciação doutrinária relativamente a outras correntes do pensamento e da prática religiosa, de clara separação para com aquelas tendências consideradas como errôneas nos primeiros séculos da era cristã. Não se tem sempre consciência de que essa convicção do estar-se certo, do possuir a verdade em contraste com o errado, o herético, manteve-se de forma subjacente através dos tempos.
Questionamentos
Na tradição da prática musical, no Brasil como em Portugal e vários outros países, missas compreendiam em geral apenas o Kyrie e o Gloria, surgindo o Credo como obra á parte. Em vários casos esse procedimento levava à utilização do Credo de um outro compositor, muitas vezes de outras épocas, contextos e linguagem musical. Menos frequentes são composições que tratam numa só obra todo o Ordinarium, Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei, o que se generalizou no decorrer do século XIX e surge como quase inquestionável no XX.
Esse fato, que há muito causou estranheza a pesquisadores, não deve ser considerado como uma deficiência ou sintoma de desconhecimento, abuso ou decadência. Pelo contrário, dá testemunho da compreensão de compositores e músicos quanto a sentidos e funções distintas das partes da missa, de sua estrutura e ordenação. Preparados mental e psiquicamente com o Kyrie e o Gloria, este uma manifestação hínica das mais empolgantes do repertório dos séculos XVIII e XIX, o participante do culto encontra-se em estado interior para afirmar, com ênfase e convicção, o seu credo. Este pertence, na ordenação do todo, à parte da missa onde a palavra é que conduz, à assim chamada liturgia da palavra.
Nos estudos, a constatação de que compositores do passado criaram obras que ou tratam apenas do Kyrie e Glória, do Credo em separado ou daquelas que compreendem o Credo, o Sanctus e o Agnus Dei suscitou e deve suscitar considerações mais atentas e diferenciadas. Essa prática não deve ser condenada pelo fato de aparentemente prejudicar a unidade do todo da missa como obra, por levar à execução de composições de diferentes épocas e estilos. Essa prática deve ser, ao contrário, vista como testemunho de conhecimentos e interpretações de compositores e músicos da ordenação da missa e do seus empenhos em tratar o texto de forma adequada segundo os seus sentidos e funções no todo.
Desenvolvimento dos estudos
A literatura teológica, religiosa em geral de significado para estudos do Credo em língua portuguesa é vasta. Do ponto de vista dos estudos culturais e musicais, uma renovação quanto a perspectivas iniciou-se na década de 1960 com o reconhecimento da necessidade de mudança de paradigmas e procedimentos que se fêz notar em diferentes áreas de conhecimento. Esses desenvolvimentos decorreram em época que também foi marcada por intuitos inovadores desencadeados pelo Concílio Vaticano II.
No âmbito dos estudos culturais e musicais, o movimento renovador foi dirigido à superação de categorizações de objeto na pesquisa, de separações entre áreas e esferas em diferentes sentidos, de colaborações inter- e transdisciplinares para uma mudança de mentalidades e de procedimentos. O direcionamento da atenção a processos ultrapassadores de barreiras entre grupos étnicos, sociais, culturais e também religiosos passou a marcar reflexões, estudos e pesquisas. A difusão dessa nova mentalidade devia substituir concepções de difusão cultural de cunho educativo popular até então dominante.
No Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão, formou-se um círculo de estudos do Gregoriano e da música sacra em geral para o reexame de concepções sob essa perspectiva culturológica. Nesses trabalhos, o Credo, como publicado no Missale Romanum e tratado em obras musicais de renomados compositores, passaram a ser analisados. O levantamento de obras de músicos brasileiros do passado em arquivos trouxe à luz a questão do tratamento do texto e da sua posição na ordenação da missa.
No âmbito dos estudos superiores, essa temática foi tratada em cursos de Estruturação na Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo a partir de 1972. Sendo a área da Estruturação conduzida em estreito relacionamento com a área de Etnomusicologia, o tratamento do tema foi marcado pela atenção voltada a estudos de processos culturais, de integração e diferenciação de grupos em contextos urbanos, em particular metropolitanos. Os educadores deviam ser preparados para compreender condicionamentos culturais de educandos, processos de afirmação, adaptação e assimilação em mudanças culturais.
O interesse dos estudos e das pesquisas empíricas do meio envolvente foi dirigido a interações. Nesse contexto, assumiu particular relevância aquelas expressões de cultos ou festivas que manifestavam essas interações e que eram - e são - compreendidas imprecisamente como sincretísticas. Um dos aspectos estudados disse respeito à compatibilidade de acepções com aquelas de adeptos que também se consideravam católicos e que assim se declaravam no Credo.
Estudos do século XIX
Composições brasileiras do Credo foram tratadas no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia com musicólogos, evangélicos e católicos, assim como com professores de morfologia na Escola Superior de Música de Colonia. Nos estudos tomaram parte pesquisadores portugueses.
A atenção foi dirigida sobretudo a processos músico-culturais no século XIX. Uma das razões desse enfoque foi o fato de encontrar-se em andamento um projeto internacional dedicado às culturas musicais da América Latina no século XIX. O programa brasileiro pôde contar com a participação de pesquisadores provenientes de vários países latino-americanos que colaboravam com a obra em preparação.
A celebração do Ano Palestrina em 1975 favoreceu a atenção à música sacra em anos marcados por debates sobre mudanças na prática sacro-musical em decorrência do Concílio Vaticano II. Os estudos e reflexões não se delimitaram a Palestrina e sua época, mas voltaram-se sobretudo à continuidade de concepções e práticas através dos séculos, salientando-se aqueles concernentes ao stilo antico e à prática a cappella.
O principal foco foi porém o século XIX, o século da Restauração e do movimento restaurativo eclesiástico, cujo marco principal foi o Concílio Vaticano I (1869/70) e que, no referente à música sacra, foi aquele do Cecilianismo. A idealização retroativa de um estilo palestriniano visto como referencial modelar no ideário ceciliano foi reconhecida como expressão eurocêntrica que exigia revisões historiográficas. Nessas reflexões o Credo desempenhou um papel de fundamental significado.
O restauracionismo eclesiástico foi fundamentalmente uma reação contra processos secularizadores de um século que foi também aquele de desenvolvimentos técnicos e científicos e de progressos materiais. Os intentos de recuperação e a intensificação da vida religiosa, de normas de comportamento e da moral segundo prescrições eclesiásticas, de recatolização de sociedades torna compreensível a importância do Credo como declaração e afirmação de fé.
A mais antiga fonte
Entre as composições de Credo do repertório musical brasileiro levantadas e analisadas, destacou-se um Credo do reperório de cidades do vale do Paraíba, entre elas de Natividade da Serra Os manuscritos foram encontrada no decorrer de pesquisas na região no decorrer da década de 1960 e considerados no Centro de Pesquisas em Musicologia em São Paulo. As partes, copiadas em várias datas, documentam ter sido a obra ainda em uso no século XIX. Pela notação e sobretudo pelas características estilísticas da composição, comparáveis com outras obras mais antigas da região, esse Credo pode ser considerado como expressão de continuidade na tradição de obras remontantes ao século XVIII no decorrer do século marcado por desenvolvimentos restaurativos.
O tratamento silábico do texto, a condução de cada voz em tom recitado, quase que salmódico, as afirmações enfáticas da palavra credo, foram considerados a partir de estudos já tratados na literatua sacro-musical. Esse tratamento do texto, não dando margens a interrupções e atrasos no decorrer da celebração como exigido na legislação sacro-musical, foi analisado sob a perspectiva da recepção de prescrições e práticas eclesiásticas..
Um significado especial adquiriu a linguagem musical das partes instrumentais no tratamento desse texto. Se as vozes recitam ou declamam o Credo individualmente em grandes trechos sob uma nota tenor, a parte instrumental é elaborada, o que se revela sobretudo na condução das partes para violinos. Ela surge como documento do alto nível da prática instrumental, em particular de cordas na região, assim como da recepçãp de cprrentes estilísticas européias do século XVII, em particular do pré-classicismo ceentro-europeu, o que se comprova através do cultivo de obrs da escola de Mannheim em centros como Guatinguetá, o que foi revelado nas pesquisas de acervos locais.
Desenvolvimentos subsequentes
Com a fundação do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos da Consociatio Internationalis Musicae Sacrae (Roma) em 1977, passou-se a aprofundar o tratamento das fontes provenientes do Brasil sob o aspecto teológico e histórico-eclesiástico. O Credo passou a ser considerado com teólogos e musicólogos beneditinos do mosteiro de Maria Laach. Na seção de Etnomusicologia do instituto, sob orientação brasileira, foi desde então considerado em estudos e debgates concernenentes à missiologia em regiões extra-européias. O Credo foi tema de encontros com Cleofe Person de Mattos nas suas estadias em Colonia.
Uma outra obra que passou a receber particular atenção foi o Credo de Dom Pedro I - Pedro IV de Portugal -, considerado ao lado de outras obras desse primeiro imperador do Brasil em estudos conduzidos na Mogúncia e em Munique.
O Credo de Dom Pedro I foi tratado em estudos conduzidos por pesquisadores brasileiros em 1980 e em trabalho de Mons. Guilherme Schubert, compositor e responsável pelo arquivo musical da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Foi considerado no Simpósio Internacional de Música Sacra realizado em São Paulo, em 1981, sendo lembrado em ato celebrado no mausoléu do monumento à Independência no Ipiranga precedendo simbolicamente a fundação da Socidade Basileira de Musicologia.
O Credo de D. Pedro I foi objeto de debates, levantando a questão das relações entre o Catolicismo e a tradição maçônica no Brasil. A problemática identificatória inerente ao Credo dominou as reflexões de cunho ecumênico e aquelas em âmbito não-eclesiástico, levantando questionamentos e considerações críticas e de revisão de acepções.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.