ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
A Mater dolorosa - Nossa Senhora das Dores, das Angústias, dos Temores e.o. - é uma das expressões da veneração mariana que exige particular atenção nos estudos culturais de países marcados pelo Catolicismo. A sua consideração é para Brasil - assim como para Portugal, Espanha e países latinoamericanos, entre outros - de relevância não só para estudos da história da religião como também para aqueles culturais voltados a tradições e a análises de mentalidades e demopsicológicas, assim como concepções e vivência de sofrimentos e angústias em processos culturais.
A rememoração das sete dores de Maria - em paralelo das suas sete alegrias - é celebrada sobretudo no dia 15 de setembro, festa das Sete Dores de Nossa Senhora (Septem Dolorum Beatae Mariae Virginis), estabelecida oficialmente sob o pontificado de Bento XIII (1649-1730) em 1727. A veneração é porém muito mais antiga, sendo documentada na Idade Média. As Dores de Nossa Senhora são também rememoradas em outras datas do calendário, na sexta-feira após o Domingo da Paixão (Judica) - quinto da Quaresma -, em outras sexta-feiras.
A veneração das Dores, intensa nos países ibéricos, foi transmitida aos países descobertos pelos europeus por navegantes, colonos e missionários. Extraordionariamente intensa na Espanha - padroeira de Granada - a veneração adquiriu ainda maior significado nos territórios portugueses à época da União Pessoal de Portugal e Espanha (1580-1640). Mesmo após a Restauração, que trouxe um deslocamento de pesos na veneração mariana à Imaculada Conceição, declarada rainha de Portugal, a veneração das Dores manteve-se intensa, podendo-se constatar um incremento no século XIX, século do Historismo e Romantismo, marcado por correntes de expressões emotivas, dramáticas e sentimentais.
A sua consideração atenta é fundamental para a História da Arte, para a compreensão de sentidos de imagens e representações marcadas por intensa expressividade dramática e emocionalidade não só do Barroco como também de suas extensões e transformações no século XIX. Ela revela diferenças quanto à linguagem visual na expressão de emoções, que vão da mais intensa dramaticidade passional àquela sentimental, doce que marca muitas imagens e que são frequentemente desqualificadas como exemplos de Kitsch.
A consideração dessas representações abrem caminhos para a percepção de diferenças e nuances em situações e processos internos daqueles que as contemplam, de comunidades e localidades, adquirindo significado para estudos de mentalidades e de psicologia individual e coletiva. É significativo para o estudo de condicionamentos religioso-culturais e, sobretudo, para estudos voltados à mulher, a visões do mundo e a formas de comportamento.
A veneração da Mater dolorosa é marcada por compaixão, por co-participação interior no sofrimento de Maria e esta, em complexas relações estabelecidas pela doutrina, com a compunção. Os estudos da arte e culturais em geral não podem limitar-se a aspectos externos das representações, ás suas características estilísticas, mas devem considerar os seus efeitos no interior daqueles que as contemplam.
Essa função das imagens é fundamentada nos textos e constitui o sentido de sua criação e exposição em altares. Nesse sentido, aquele que cria as imagens não o faz para manifestar, representar, sinalizar ou simbolizar conteúdos, não o faz no sentido de alegorias, mas para atuar naqueles que as contemplam. A atenção das análises deve ser voltada assim a efeitos, a efeitos intencionados e vivenciados. A contemplação deve movimentar processos internos no devoto, diz respeito a emoções e concepções de alma.
É nesse contexto que se revela o significado das Jaculatórias das Dores. Como o conceito de jaculatória indica, trata-se de um arremesso de prece, de uma oração que é atirada com ímpeto, como uma flecha do íntimo daquele que ora e que, na veneração de Maria nas suas dores, é movido por sentimentos de compaixão.
Desenvolvimento de estudos
Da perspectiva culturológica e no âmbito da pesquisa musical em geral, as reflexões foram encetadas em São Paulo a partir da década de 1960. Ponto de partida para os estudos foram as Jaculatórias das Dores no âmbito de Setenário em igrejas de irmandades tradicionais de São Paulo, em particular naquela do Carmo.
As Jaculatórias das Dores passou a ser um dos temas considerados no círculo de estudos do Gregoriano e do canto medieval em geral criado no âmbito do Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão em 1968. Em encontros realizados em cooperação com o Instituto Pio X de São Paulo, com a Faculdade Sedes Sapientiae e o Studium Theologicum de Curitiba, analisou-se o conteúdo de textos de Jaculatórias.
Os estudos foram tratados de forma contextualizada em viagem de estudos e contatos a Minas Gerais por ocasião da Semana Santa em São João del-Rei. A veneração de Nossa Senhora das Dores foi tratada em diálogos com músicos e religiosos da cidade, em particular com o maestro Pedro de Sousa. Nesses encontros, considerou-se as relações entre as Jaculatórias das Dores e o Stabat Mater.
Em nível superior, os estudos tiveram continuidade em cursos de Estruturação, História da Música e Etnomusicologia do Instituto Musical de São Paulo a partir de 1972. As Jaculatórias das Dores praticadas na igreja da Ordem Terceira do Carmo, de 1862, composição de Antonio José de Almeida, foram examinadas e interpretadas em concerto do Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista, sendo interpretadas por Mariinha Magalhães Lacerda. Em viagem de contatos e estudos a Portugal e Espanha, em 1974, considerou-se a intensa veneração das Dores em cidades como Granada, Toledo e Ávila.
A partir de 1975, os estudos passaram a ser realizados em cooperações internacionais a partir da Universidade de Colonia. A participação de pesquisadores portugueses permitiu a consideração de práticas tradicionais em Portugal nas suas relações com o Brasil.
Jaculatória das Dores no século XIX
Entre as obras levantadas, as Jaculatórias há muito consideradas da tradição do Carmo de São Paulo mantiveram-se no centro das atenções. Elas compreendem três jaculatórias, duas para solo de soprano, a última para solo de contralto e coro. A linha melódica, com os seus saltos intervalares, revela o sentido do arremesso impetuoso da precação. O acompanhamento instrumental revela ter o compositor - que era também pianista - partido no seu processo criador da melodia e de sua harmonização ao piano. A composição, em português, corresponde a outras obras do gênero escritas em vernáculo, o que acentua a sua função na prática devocional, não litúrgica. Do ponto de vista estético, levantou-se o problema do sentimentalismo no tratamento do texto.
As Jaculatórias das Dores da tradição paulistana foram consideradas em comparações com as Jaculatórias das Dores levantadas em pesquisas no Vale do Paraíba. A obra é marcada pela intensa expressividade emocional que determina a sua configuração melódica.do canto solista.
Desenvolvimentos subsequentes
Com a criação do centro de estudos do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos da Consociatio Internationalis Musicae Sacrae junto à abadia de Maria Laach, a atenção concentrou-se aos sentidos teológicos e à história religiosa da veneração de Maria nas suas dores sob o aspecto de questões de atualidade referentes a processos culturais em países extra-europeus. Nesses estudos, constatou-se o significado dessa veneração na Europa central de língua alemã na Idade Média.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.