ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
A Ladainha de Santa Teresa é uma das divesas ladainhas que foram consideradas desde a década a década de 1960 em estudos culturais e musicológicos realizados no Brasil e que tiveram continuidade na Europa a partir de 1974.
O estudo de ladainhas compreende não só aquelas criadas por compositores, mestres de coros de igrejas, cantores ou organistas, como também aquelas transmitidas por transmissão oral, praticadas em meio rural, dirigidas por um capelão leigo. Ladainhas podem ser consideradas a partir de fontes em estudos histórico-musicais ou estudadas empiricamente através da observação ou da participação observante em práticas devocionais.
Ladainhas compostas por autor conhecido ou desconhecido, podem popularizar-se, o que é favorecido pela fácil memorização devido às repetições. Ladainhas transmitidas pela tradição oral podem ser resultado dessa popularização. O estudo de ladainhas exige assim procedimentos interdisciplinares e uma atenção dirigida a processos que ultrapassam esferas do erudito e do popular. Essas constatações marcaram os estudos iniciados iniciados nos anos que se seguiram ao Concílio Vaticano II no Brasil.
A prática das ladainhas, intensa na Idade Média, passou por restrições no século XVI, tendo sido reduzida àquela de Todos os Santos e à Ladainha Lauretana (Litaniae Lauretanae ou Litania de Beata). Essa restrição, porém, não interrompeu a prática de orações coletivas no meio popular, doméstico ou rural, em altares ou capelas.
Significado
O estudo das ladainhas é de significado não só para estudos histórico-musicais, de tradições populares e etnomusicológicos, como também sócio-psicológicos. As repetições e as meditações levam a um estado mental e psíquico de introspecção, transportando aquele que ora a uma esfera marcada por receptividade, o que, na tradição cristã, tem o seu mais alto exemplo em Maria. A prática das ladainhas, propiciando a tranquilização de ânimos, de ímpetos e a vivência da participação comunitária foi fomentada na missão e catequese, podendo-se salientar aquela de africanos e seus descendentes.
A ação mental-psicológica decorrente da constante repetição de respostas da comunidade aos apelos, às súplicas e aos pedidos do cantor que conduz a ladainha, capelão ou coro, foi um dos aspectos que suscitaram reflexões. Sempre considerou-se que, em príncipio, essa prática não se limita à cultura cristã, podendo ser estudada nas suas correspondências em diferentes tradições religiosas.
Uma das reflexões encetadas, e pouco consideradas em estudos, disse respeito a relações entre o estado mental-psíquico favorecido pelas repetições e pela interiorização que leva a uma esfera marcada por receptividade não se relacionaria com a experiência mística.
Desenvolvimento dos estudos
O interesse pelo estudo das ladainhas em São Paulo na década de 1960 foi despertado no âmbito dos estudos de tradições musicais com a vivência da prática das ladainhas na Irmandade do Rosário dos Homens Pretos e na Ordem Terceira do Carmo. Os estudos foram desde o início conduzidos sob perspectivas interdisciplinares, baseando-se tanto em fontes conservadas em acervos como em documentos recolhidos da tradição oral.
Constatou-se uma insuficiente consideração da vivência mística nos estudos empíricos, em particular na área de Folclore. Embora práticas religiosas de natureza mística que se referenciam expressamente com santos católicos tinham sido tratadas há muito sob o conceito de sincretismo, nem sempre os seus sentidos foram considerados adequadamente. Tentativas nesse sentido deram ensejo a polêmicas, como aquelas dos anos de 1960 entre Roger Bastide (1898-1974) e Rossini Tavares de Lima (1915-1987).
Concepções místicas determinam a vivência de espaços, a atribuição e experiência de locais nos seus elos com a natureza, a geografia e topografia, de moradias, de práticas alimentícias, de interpretações de sinais, sonhos e visões, de observâncias sob os mais diversos aspectos. Essas expressões têm sido objeto de muitos estudos e dado ensejo a interpretações e hipóteses quanto a origens que revelam a incompreensão de pesquisadores e a insuficiência de conhecimentos da tradição mística cristã e judaico-cristã.
As reflexões motivaram também estudos sob o aspecto das suas relações com espaços, com qualidades numinosas ou auráticas de locais, fontes, rios, montanhas que determinaram a construção de igrejas e a configuração urbana de muitas cidades. Em projeto iniciado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e conduzido em cooperações com estudantes de História e Geografia Urbana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências, analisou-se neste sentido a cidade de São Paulo. Igrejas como a da Boa Morte, a do Carmo e de sua Ordem Terceira, e sobretudo o antigo Recolhimento de Santa Teresa revelaram o significado da mística no passado de São Paulo.
Fundado pelo bispo Dom José de Barros de Alarcão (1634-1700) em visita a São Paulo, a construção do Recolhimento foi possibilitada por donativos feitos em 1685 por pessoas de liderança em São Paulo, o que indica o significado da veneração de Santa Teresa no século XVII. Em 1913, no contexto da política eclesiástica restaurativa, o Recolhimento tornou-se convento professo segundo a regra do Carmelo, tendo Dom Duarte Leopoldo e Silva (1867-1938), Arcebispo de São Paulo, feito vir Carmelitas descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro.
Os trabalhos tiveram continuidade, em nível superior, em cursos de Música na Evolução Urbana de São Paulo e Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo. Com o Coro e Orquestra de Música Sacra. Paulista do Centro de Pesquisas Histórico-Musicais então fundado, reconstruiram-se e executaram-se varias ladainhas. Também aqui procurou-se considerar resultados de estudos empíricos na realização sonora das fontes grafadas levantadas em pesquisas.
A alternância leva a interações entre cantor e comunidade, - no caso da prática coro-orquestral de coro e da comunidade -, o que foi de grande significado no desenvolvimento dos estudos de ladainhas no Brasil. Em pesquisas realizadas na Bahia e no Nordeste em 1972, pôde-se observar a alternância entre as partes coro-orquestrais de obras do século XIX com as respostas em gregoriano da comunidade, uma alternância tonal/modal, de contrastes rítmico-métricos das partes compostas com o rítmo livre, oratório das respostas, fenômenos do mais alto significado para estudos musicológicos. Essas constatações deram ensejo a estudos e aulas no âmbito do Museu de Artes e Técnicas Populares da Associação Brasileira de Folclore e da área de Etnomusicologia do Instituto Musical de São Paulo.
Esse procedimento teve prosseguimento nos trabalhos levados a efeito na área da Etnomusicologia na Europa. O interesse etnomusicológico por ladainhas decorreu também do conhecimento já de longa data de que em vários contextos culturais pode-se constatar a prática oração comunitária marcada pela alternância entre um cantor ou diácono e uma comunidade, que responde a seus pedidos e invocações com um apelo que continuamente se repete.
Foco: século XIX
No projeto de estudos culturais e musicológicos desenvolvido a partir de 1975 na Europa, o século XIX foi tratado com especial atenção por corresponder à atualidade de debates tanto no âmbito da música sacra como no da musicologia em geral. Intentos de revisão do século XIX marcavam estudos de música sacra em época de preocupações quanto a mudanças decorrentes do Concílio Vaticano II, sobretudo em países de missão. O ano marcado por rememorações de Palestrina pelos seus 450 anos favoreceu também reflexões críticas do restauracionismo sacro-musical cecilianista do século XIX. Intuitos de reconsideracões do século XIX eram também constatados em círculos de musicólogos. Uma de suas expressões era projeto dedicado às culturas musicais da América Latina no século XIX em andamento na área da Etnomusicologia em Colonia.
A prática das ladainhas foi intensificada no século XIX, aquele que foi o da Restauração, do movimento anti-secularizador e anti-modernista cujo marco foi o Concílio Vaticano I (1869-1870). Levando através das repetições a um estado mental e psíquico marcado por interiorização, a prática foi fomentada no âmbito do movimento de restauração religiosa. Serviu aos intentos eclesiásticos anti-secularizadores.
Thérese de Lisieux, nascida Martin, nascida em Alançon (1873 - 1897) foi uma carmelita descalça que desempenhou um papel de extraordinário significado no carmelitanismo a partir das últimas décadas do século XIX. A Ladainha de Theresa do Menino Jesus da santa face dirige-se explicitamente em primeiro lugar, além de Maria, rainha do monte Carmelo, a Teresa de Ávila (1515-1582) e João da Cruz (1542-1591).
Teresa do Menino Jesus é considerada como uma dádiva à ordem Carmelita, como padroeira da missão, segunda padroeira da França e doutora da Igreja. É venerada pelo seu amor por Cristo, o amor que a preenchia por ação do Espírito Santo. É comparada a uma rosa. Tinha o anelo de ser similar ao menino Jesus. Essa infância espiritual. a modéstia do coração, não desejando o que surge como de brilho aos olhos humanos, foi marcada por um intento de esquecer-se de si, voltando-se aos outros, promovendo a alegria, também através da música, o que torna compreensível o seu significado para estudos musicais.
A sua veneração e a influência de seus escritos, de suas concepções espirituais e teológicas e do seu exemplo na vida religiosa e cultural em geral, em particular daquelas que pertenceram à congregação por ela fundada. não têm sido suficientemente consideradas na pesquisa da religião e nos estudos culturais em geral. A experiência mística e a procura da união mística, a vivência interior, o receber a vinda do Espírito, o cair em estado de santidade, a êxtase e o transe místico podem ser estudadas em cotejos com diferentes formas de práticas religiosas tradicionais.
Teresa de Ávila, decantada na Ladainha, não tem sido suficientemente considerada sob o aspecto de processos culturais e psicológicos. Basta lembrar os contextos existenciais cristão-novos em que se inseriu como filha de judeus que foram obrigados à conversão. Estudos atentos fazem-se necessários, pois dizem respeito a precedentes que podem explicar a o significado da mística em fins do século XVI e no século XVII nos países ibéricos. São necessários também em estudos voltados a condicionamentos culturais que marcam mentalidades e disposições psíquicas que se manifestam em práticas místicas até o presente. Elas revelam uma concepção do mundo e do homem marcada por uma profunda convicção da existência de uma realidade transcendente, absoluta, de dimensões outras àquela percebida pelos sentidos físicos. Sob o aspecto da música, o estudo da vivência e da procura da experiência mística é de grande relevância, uma vez que danças, cantos e toques instrumentais desempenham papel importante nessas expressões e no cair em estados de êxtase.
Aspectos das análises e reflexões
A Ladainha de Santa Teresa levantada nas pesquisas realizadas foi conservada a em cópias de diferentes datas. As partes indicam ter sido escrita ou praticada a duas vozes masculinas e baixo, acompanhadas por três volinos, flauta, trombone e baixo. Foi recopiada ainda em 1893, acrescentando-se um saxofone.
Pela sua linguagem musical, tem origens mais remotas, tendo sido reinstrumentada em fins do século XIX. Essa ladainha apresenta outras características de muitas outras dessa prática devocional. O contraste entre as partes coro-orquestrais, em parte em 3/4, algumas em Allegro, corresponde àquele observados centros que ainda mantinham a tradição sacro-musical. As partes vibrantes e expressivas dos apelos coro-orquestrais alternavam-se também aqui com as respostas suplicantes em cantochão em rítmo livre, oratório da comunidade,
A obra apresenta características peculiares que mereceram atenção. Nela registram-se formações sincopadas e acompanhamentos de cunho percussivo. Atenção desperta o uso de pizzicatti em alternâncias com partes executadas com arco nas partes instrumentais. Trêmulos em regiões agudas também caracterizam essa ladainha. Essas singularidades podem dar margens a suposições quanto a efeitos pretendidos pelo compositor.
Numa primeira aproximação, causa estranheza que uma ladainha, que em princípio favorece a introspecção, seja tão alegre, viva e movimentada nas suas partes orquestrais. Nas reflexões, considerou-se que nessa aparente incoerência de sentidos não haveria na verdade contradição. O esquecer-se de si, a infância espiritual e o amor que marcam a imagem e a tradição de Teresinha do Menino Jesus e da Santa Face pode explicar essa vivacidade e alegria. As reflexões basearam-se neste sentido em citações da própria Teresa, entre outras sobre a alegria na paz do não preocupar-se pelo futuro.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.