ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
Motetos, em particular motetos da tradição sacro-musical brasileira, constituiram um dos primordiais objetos de estudos no programa musicológico desenvolvido desde 1974 em cooperações internacionais. Já no Brasil os motetos tinham estado no centro das atenção desde meados da década de 1960. A observação e a vivência do canto de motetes em procissões muito contribuiram para o despertar de interesses por estudos musicológicos. Motivaram pesquisas e estudos, conduzidos interdisciplinarmente em cooperações com pesquisadores culturais. Foram importantes na elaboração de uma orientação teórico-cultural dos estudos dirigida a processos que determinou os desenvolvimentos futuros.
Esses estudos tiveram continuidade em âmbito internacional a partir de 1974, sendo sediados no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia, dirigidos por Heinrich Hüschen (1915-1983), musicólogo especializado no estudo de motetos e editor de uma das principais obras a respeito até então publicadas. Marco inicial no desenvolvimento do projeto foi ciclo de estudos realizado em Roma em março de 1975, época da Semana Santa e da Páscoa.
Significado dos estudos
O significado dos motetos para os estudos culturais foi reconhecido, no Brasil, a partir da tradição dos motetos entoados no contexto da Semana Santa, em ofícios e na procissão dos Passos ou do Enterro de Sexta-Feira da Paixão, quando são entoados por grupo de cantores que acompanham a Verônica e as três Marias. O termo foi, porém, no passado, utilizado em outros contextos e com outras funções, designando no Brasil, entre outros, o moteto, canto, recitado ou ária ao Pregador em ofícios da festa de Corpus Christi, canto solista com acompanhamento instrumental e que, também nos seus sentidos e nas suas expressões difere dos motetos polifônicos, em geral sem acompanhamento, de procissões de Semana Santa.
Conceitos e quetionamentos
Na sua acepção mais difundida, o moteto, em particular aquele cultivado no contexto da Paixão, é um canto a várias vozes, em geral a cappella, com texto das Escrituras ou de outras fontes religiosas, tendo assumido porém diferentes configurações no decorrer dos tempos. Correspondente ao moteto na esfera secular seria o madrigal, uma relação que foi tratada já também no Brasil com corais que assim se denominam. O estudo do moteto tem nesses sentidos implicações amplas, dimensões abrangentes que exigem ser analisadas para a compreensão dessas relações.
O estudo do moteto tem sido marcado por dificuldades, tendo levantado questões de conceituação e morfologia. Esses problemas foram enfrentados tanto na pesquisa e em cursos de História da Música, como naqueles de Forma e Análise Musical, manifestando-se em publicações várias, assim como em entradas em léxicos. Essas dificuldades quanto ao próprio conceito de moteto e as diferentes configurações de obras assim denominadas no decorrer da história trazem implicações para a adequada compreensão de seus sentidos e funções.
Há muito procurou-se superar as dificuldades encontradas em estudos histórico-musicais, de formas e de práticas de execução dirigindo a atenção ao próprio termo moteto. Nesse conceito encontra-se, de fato, a chave para a compreensão de seus sentidos e funções.
Os estudos etimológicos salientam dois aspectos, o de sua derivação do latino motus, relacionado com conceitos de movimento e de mover, e o de sua derivação do termo mot no seu sentido de moto, lema, ditado, sentença, expressão condutora. Empregado em português, como também em francês (mot) ou italiano (motto), o termo é conhecido da tradição popular brasileira: o mote. Ambas elucidações possuem um sentido relacionado com movimento. O moteto refere-se neste contexto a um dito, a uma expressão condutora e que move. Aqui reside o seu significado e as suas dimensões musicais, uma vez que a música, como reconhecido já pelos antigos teóricos, tem a capacidade de mover afetos.
Essas reflexões abrem perspectivas para compreender o uso do termo em diferentes contextos e configurações musicais. É música que, nas suas estreitas relações com o texto, ou antes um texto em música que surge como lema. Essa função é aquela exercida pelo grupo de cantores que entoam motetos nas procissões de Semana Santa, movendo emocionalmente os que procedem.
Essa função manifesta-se da forma mais expressiva na procissão dos Passos ou do Enterro, quando, no sexto Passo. o sudário é mostrado pela Verônica. Esses sentidos e funções tornam compreensíveis também o uso do termo em outras configurações musicais, em obras corais com acompanhamento instrumental, assim como também em solos, como, na tradição brasileira, naqueles entoados ao pregador em ofícios da festa de Corpus Christi. O significado do termo permite também que se compreenda o seu uso em contextos não-religiosos, sobretudo nas suas relações com o Madrigal.
Desenvolvimento dos estudos
Os estudos dos motetos desenvolveram-se desde a década de 1960 a partir de sua consideração na área da Morfologia/Análise Musical e História da Música no ensino musical. Decisiva foi a vivência da prática de motetos em tradições da Semana Santa da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. Os estudos foram marcados desde o seu início pelas relações entre os conhecimentos obtidos através da observação participante e do convívio com cantores que mantinham a tradição e aqueles transmitidos em publicações e em cursos.
A orientação dois estudos foi desde o início interdisciplinar, uma vez que envolveu pesquisa empírica, estudos de tradições e folclore, historiadores e pesquisadores que se dedicavam ao estudo de formas e á análise musical. Entre os principais participantes desses estudos destacou-se Edgard Arantes, responsável pelo grupo de cantores de procissões de várias irmandades, também pesquisador e professor de canto e de Folclore.
As pesquisas referentes à tradição do canto de motetos em outros contextos e cidades de São Paulo foram desenvolvidas no âmbito do Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão. Este movimento nasceu do reconhecimento da necessidade de mudança de perspectivas e procedimentos na teoria e na prática, através de uma orientação da atenção segundo processos ultrapassadores de barreiras entre esferas do erudito e do popular, sociais, étnicas e religiosas, e assim também de áreas disciplinares. Em concerto inaugural pelo registro do movimento como sociedade em 1968, a temática foi considerada sob o aspecto secular com referência ao conceito de Madrigal.
Em círculo formado para o estudo do Gregoriano e da música sacra em geral sob a orientação culturológica do Centro de Pesquisas em Musicologia, os motetos foram examinados quanto aos textos entoados, uma vez que a êles cabem o principal significado pelo fato de constituirem os motos, os ditos condutores que determinam a função dos cantos. Esses estudos tiveram extensões no âmbito do Collegium Musicum de São Paulo, discutindo-se as consequências das aproximações teóricas para o estudo e a prática de obras dos séculos XVI e XVII.
Em nível superior, o tema foi tratado em cursos de Estruturação do Instituto Musical de São Paulo, instituídos a partir de 1972. Entre os pesquisadores que participaram das reflexões destacaram-se professores de Análise e de História da Música, assim como de autores que publicaram obras sobre formas musicais, entre êles Bruno Kiefer (1923-1987). Um dos aspectos então considerados foi o da distinção entre motetos de origens e compositores desconhecidos, transmitidos pela tradição e aqueles de autoria comprovada e datados.
Um importante marco nessas discussões foi a descoberta dos Ofícios de Semana Santa do compositor português Teodoro Ciro, mestre-capela na Bahia, de fins do século XVIII e XIX, e que inclui motetos que, apresentando na sua configuração vocal características da tradição, são acompanhados por orquestra. Esses motetos foram em parte publicados para uso dos membros da Orquestra e Coro de Música Sacra Paulista, então criado e executados pela primeira vez em ato paralitúrgico na Igreja da Paróquia de Nossa Senhora da Aclimação em 1972. Nesse coro tomaram parte antigos cantores que tinham participado nas procissões tradicionais.
Os estudos motivaram a realização do primeiro concerto dedicado primordialmente a motetos do passado brasileiro levado a efeito pelo Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista na Igreja de São Cristóvão do antigo Seminário de São Paulo em 1973. Procurou-se, nesse evento, considerar os motetos da procissão dos Passos nas suas relações com as representações nos antigos oratórios do centro de São Paulo.
Foco: século XIX
Diferentemente da maioria dos estudos existentes, a atenção foi dirigida sobretudo à prática de motetes no século XIX. Essa concentração de interesses foi resultado de preocupações decorrentes da reforma da Semana Santa e, sobretudo das mudanças litúrgico-musicais desencadeadas pelo Concílio Vaticano II nos anos de 1960. Os intentos de revisões de concepções e práticas que até então tinham vigorado dirigiram a atenção ao movimento restaurativo eclesiástico nas suas consequências para a música sacra e suas extensões no século XX, cujo principal marco foi o Motu Proprio de Pio X (1903).
Essa necessidade de análises e revisões de ideários e práticas do século XIX nas suas implicações para processos culturais no Brasil correspondeu àquelas que, na Europa foram intensificadas no contexto da celebração dos 450 anos de G. P. da Palestrina em 1975. Considerar Palestrina signifiicava também considerar a permanência de um referencial no decorrer dos séculos e os intuitos restaurativos no século XIX, em particular no contexto do Cecilianismo. Essa preocupação por revisões de visões, ideários e práticas do século XIX correspondeu ao reconhecimento da necessidade de reconsideração do século XIX na musicologia, em particular também nos países extra-europeus. Expressão desses intentos foi o fato de esar em andamento um projeto dedicado às culturas musicais na América Latina no século XIX, conduzido no departamento de Etnomusicologia do Instituto de Musicologia de Colonia.
Prática de execução histórica e estudos empíricos
Um dos resultados da observaçcão participante na prática de motetos dos passos em procissões de São Paulo foi o reconhecimento da necessidade de atenção à prática de execução histórica nas suas relações com a pesquisa empírica de tradições. A prática consuetudinária e as singularidades de sua realização sonora era marcada pelas altas vozes, sem consideração de precisão quanto ao grafado, diferenciando-se os resultados musicais em parte fundamentalmente das partes anotadas, denotando ser o importante sobretudo a expressão dos textos em altos brados de forma enfática e dramática. Os cantores entoavam as partes de memória, com grande intensidade e volume pelas ruas centrais de São Paulo. Essas expressões entoadas a alta voz, produzindo um conjunto dissonante, ressoava de modo impressionante pelas ruas escurecidas pelo apagamento da iluminação pública. O importante não era a execução, a acuidade na realização musical das partes, mas sim a expressão bradada do moto, do lema.
Um dos aspectos considerados nos estudos dos motetos de procissão no século XIX disse respeito à distinção entre aqueles transmitidos de passado mais remotos e aqueles resultantes de intentos restaurativos que procuraram retomar ou mesmo imitar estilos da polifonia vocal dos séculos XV e XVI. Essa questão já tinha sido levantada no Brasil, uma vez que vários motetos eram anônimos ou atribuídos a músicos que, no restante de suas obras, eram conhecidos por composições com outras características estilísticas. Em análises comparativas de motetos, revelou-se a dificuldade em distinguir-se diferenças entre obras inseridas na continuidade da tradição e aquelas antes expressões de tendências retroativas e reacionárias, uma vez que eram anti-secularizadoras da época do anti-modernismo eclesiástico.
Desenvolvimentos seguintes
Motetos a cappella ou com discreto apoio instrumental, tanto aqueles transmitidos por tradição de épocas mais remotas, como aqueles criados em estilo antigo ou inseridos em movimentos retroativos, como o ceciliano, foram tratados em cooperações com pesquisadores da polifonia vocal, teóiogos e músicos de igreja. Motetos de José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) estiveram no centro de estudos conduzidos desde 1975 na Europa conjuntamente com pesquisadores como Cleofe Person de Mattos (1913-2002).
Os resultados dos estudos de fontes brasileiras no contexto geral da pesquisa de motetes foram discutidos em colóquios de doutoramento na Faculdade de Filosofia da Universidade de Colonia, levando a tese apresentada em 1979-. A partir desses estudos, os motetos foram considerados no I Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira, realizado em São Paulo, em 1981, no âmbito do qual fundou-se a Sociedade Brasileira de Musicologia. O encerramento do simpósio foi dedicado a motetos da tradicnao brasileira a partir de obras levantadas na pesquisa remontante à decada de 1960 em São Paulo, executados pelo Collegium Musicum de São Paulo sob a regência de Roberto Schnorrenberg (1929-1983), primeiro presidente da sociedade. A impressão causada a musicólogos europeus levou a que motetes brasileiros, em particular aqueles de José Maurício, fossem executados nos Países Baixos e inseridos no repertório de Semana Santa da catedral de Augsburg.
Os estudos de motetos adquiriram particular relevância nos estudos voltados a questões concernentes à música sacra em países extra-europeus com a fundação do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos pela Consociatio Internationalis Musicae Sacrae (Roma), instalado próximo à abadia de Maria Laach, um dos principais centros de estudos de ciências da liturgia.
Com a fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS) em 1985, a atenção passou a ser dirigida à prática motetística em contextos globais de regiões marcadas pela presença portuguesa e pelas atividades de missionários no período colonial.
No âmbito dos estudos luso-brasileiros, esses estudos levaram a pesquisas de motetos na música sacra de Goa, Índia. Esses estudos, realizados em cooperação com religiosos e pesquisadores locais, levou à primeira publicação de motetos de Goa. Quando de uma nova publicação por pesquisador português apresentada em colóquio da Academia Brasil-Europa, em 1999, salientou-se que esses estudos não eram recentes, tendo sido apresentados e discutidos em comparações com a tradição portuguesa e brasileira já muito anteriormente. Os motetos foram considerados a seguir em simpósios, conferências, aulas e seminários, como aqueles realizados nas universidades de Bonn e Colonia a partir de 1997.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.