ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
Novenas - nove dias de orações que antecedem e preparam grandes datas do calendário religioso, de Pentecostes, Páscoa ou Natal de festas de Maria de santos ou em outras ocasiões - batizados, casamentos, ordenação sacerdotal e.o.- é uma prática de oração que merece particular atenção nos estudos culturais, também sob o aspecto da música. Estudos de novenas não são recentes, tendo sido tratadas sobretudo sob o aspecto religioso e de história eclesiástica. Também nos estudos culturais empíricos houve vários estudiosos de tradições que a elas se dedicaram.
Significado
Novenas são de grande significado para a vida religiosa, social e cultural de comunidades nos países de formação católica. A sua consideração nos estudos culturais é indispensável. Durante nove dias a vida comunitária de inúmeras cidades, e mesmo a atmosfera de localidades é marcada pelas novenas em preparação à data a ser comemorada.
Preparando espiritualmente mental- e psiquicamente comunidades, as novenas estabelecem uma atmosfera de expectatividade do que será celebrado. Possuem um cunho antecipatório, de antecedência e preparação para o que se celebra no seu término. Este é o seu fim, o foco que conduz e determina sentidos dos nove dias precedentes.
A música adquire relevante significado nas novenas pela sua capacidade de mover interiormente aqueles que se recolhem, despertar afetos, contribuindo ao estabelecimento de um estado de espírito, mental e emocional adequado e dirigido ao que é esperado. Precedendo comemorações, os nove dias estabelecem nas comunidades um espaço de tempo pré-festivo relativamente longo conduzido pelos sentidos do que será, por uma expectativa que se intensifica, um processo ao qual a música, na sua qualidade de mover afetos, muito contribui.
É compreensível, assim, que em muitas cidades brasileiras as novenas constituiram no passado e em parte constituem ainda no presente um dos principais momentos da vida musical, nos quais participam instituições, cantores e instrumentistas sob a condução de mestres que os preparam e conduzem. Compositores, visando os sentidos desses nove dias, criaram obras marcadas pelos sentidos do que vai ser celebrado, composições que procuram atuar mental e psiquicamente nos ouvintes, elevando-os meditativamente em antecipação ao esperado.
Essa função da música não pode ser esquecida quando se considera as inúmeras novenas que se registram no patrimônio musical do Brasil. Esse significado dos nove dias é fundamental para o estudo dessas obras, ainda que estas tenham adquirido diferentes características de linguagem musical, estilísticas e de formas de expressão no decorrer de processos históricos.
Uma análise musical no seu sentido convencional, partindo apenas do texto musical em si, não é suficiente, assim como não são suficientes considerações exclusivamente históricas quanto a autores e obras. Agindo sobre movimentos expectativos de espírito, mentais e psíquicos de comunidades, as novenas possuem dimensões mais amplas, coletivas, sócio-psicológicas e devem ser consideradas sob o aspecto do estudo de processos culturais.
Fundamentos
A primeira questão que se levanta na pesquisa cultural é a razão do número 9 de dias marcados pelos sentidos da celebração que se realizará. Na perspectiva cristã, na sua fundamentação segundo as Escrituras, esse número de dias remonta àqueles nos quais os apóstolos, os discípulos e Maria recolheram-se em orações após a Ressurreição (Apóstolos 1, 13-14).
O modêlo por excelência das Novenas é, segundo essa elucidação, aquela de Pentecostes. Neste sentido, todos os estudos concernentes às novenas devem partir desse modêlo, ou seja, das Novenas do Espírito Santo. A prática da novena relaciona-se nesses seus fundamentos com aquela dos primeiros cristãos e refere-se estreitamente à vinda do Espírito.
A Novena do Espírito Santo se encontra à base de novenas para outras festas do calendário religioso, assim como de festas do culto mariano e de santos, de momentos decisivos na vida, em particular na religiosa como em atos de consagração sacerdotal e de votos de religiosos, assim como também sob o signo da esperança e fé na vida pós-morte no falecimento de clérigos e religiosos.
A vinda do Espírito Santo aos discípulos em forma de chamas de fogo e a sua presença na Igreja, representando assim os seus fundamentos, são concepções determinadoras da linguagem visual do culto, de tradições festivas e de suas expressões musicais. O verter do Espírito Divino e os dons do Espírito pertencem ao núcleo dessas concepções. Para a análises sob o aspecto cultural e sócio-psicológico deve-se considerar também os dons ou frutos do Espírito que devem imperar - sabedoria, inteligência, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor -, uma vez que estes dizem respeito a estado de espírito, de mente e de alma, marcando mentalidades e comportamentos.
Desenvolvimentos precedentes
A atenção a essa prática intensificou-se nos anos que se seguiram ao Concílio Vaticano II. As mudanças liturgico-musicais e de práticas religiosas tiveram também consequência para os estudos culturais, motivando revisões e renovações de perspectivas e procedimentos.
No Brasil, esses estudos, desenvolvidos desde a década de 1960, foram conduzidos por pesquisadores de tradições religiosas, de folclore e historiadores da música. Exigiram cooperações e procedimentos interdisciplinares, uma vez que novenas eram por um lado ocasiões para a permanência da prática coro-orquestral e para o cultivo de grandes obras de compositores do passado na preparação de grandes festas do calendário em comunidades particularmente conscientes da tradição e, por outro, praticadas em meio popular, em capelas e altares em regiões rurais ou em casas particulares, com cantorias conduzidas por um cantador leigo. Essa prática, incluindo a oração do rosário ou do terço, assim como ladainhas, exigiam procedimentos outros no seu estudo, observações participantes ou participações observadoras próprias dos estudos empíricos.
As relações entre a tradição coro-orquestral do passado e canto gregoriano ou as suas formas assimiladas popularmente, ss práticas de canto popular, a uma vou ou em terças paralelas, com ou sem acompanhamento instrumental marcaram os estudos de novenas,
A superação de divisões entre esferas do erudito e do popular, de tradições e estilos, de divisões entre grupos sociais exigidas nos estudos de novenas correspondeu aos intentos de renovação de estudos culturais e musicais através de um direcionamento da atenção a processos ultrapassadores de divisórias que marcaram desenvolvimentos nos estudos e nas pesquisas. O estudo novenas contribuiu a reflexões e estudos culturais de condução musical e, concomitantemente de estudos musicológicos voltados a análises de processos culturais. Foi alvo de estudos no movimento Nova Difusão e no seu Centro de Pesquisas em Musicologia em São Paulo, levando a levantamento de fontes em acervos e a pesquisas de campo em diferentes comunidades, cidades e regiões do Brasil.
Estudos luso-brasileiros
O estudo de Novenas no Brasil não é recente. Novenas foram consideradas no âmbito da música sacra e em estudos histórico-musicais e da pesquisa de tradições. Uma nova fase nesses estudos iniciou-se na década de 1960 com um movimento de reorientação de estudos culturais e musicais que procurou dirigir a atenção a processos na pesquisa em superação de modos de pensar e proceder determinados por categorizações do objeto, do erudito e popular, sendo fundamentalmente inter- e transdisciplinar.
As expressões festivas do culto ao Espírito Santo no Brasil foram há décadas objeto de interesse de pesquisadores de tradições, existindo grande número de estudos a respeito. A festa do Espírito Santo em São Paulo foi objeto de atenção na área de Folclore após a introdução do curso em conservatórios em 1964. O seu estudo foi promovido por Edgard Arantes, cantor, pesquisador e regente em irmandades de São Paulo, em particular na Igreja do Espírito Santo da capital, marcada pela tradição açoriana, o tema foi considerado com particular atenção em 1965 e 1966.
Para além de exames da literatura que registra o significado das festas do Espírito Santo na cidade e nos seus bairros no século XIX, em particular na Penha, bairro marcado pela presença portuguesa, realizaram-se pesquisas de campo e de arquivos em cidades do interior, em particular no vale do Paraíba. Em 1966 realizou-se uma exposição de símbolos da festa do Divino na instituição.
A orientação inter- e transdisciplinar do Centro de Pesquisas em Musicologia da Nova Difusão possibilitou a atenção relacionada das tradições consideradas como folclóricas da festa do Espirito Santo e aquelas baseadas em fontes documentais de obras executdas nas novenas. Neste sentido, realizaram-se estudos de acervos em São Paulo e em cidades do interior.
No Museu de Artes e Técnicas Populares da Associação Brasileira de Folclore, os estudos referentes às festas do Espírito Santo passaram a ser discutidos no âmbito dos intentos de atualização de definições da área e de seus métodos. Entre as regiões, nas quais a festa do Divino Espírito Santo adquire um significado de especial magnitude no calendário religioso, encontra-se cidades históricas como em Goiás ou, em São Paulo, as do vale do Paraíba. Em várias dessas cidades, como em São Luís do Paraitinga, essas festividades apresentam similares características àquelas dos Açores.
Marco nesses estudos foi a vivência da novena das festas da Purificação em Santo Amaro da Purificação na Bahia em 1972. As relações e interações entre a música coro-orquestral do remoto passado e das respostas da comunidade na tradição do cantochão nas ladainhas, da homofonia tonal e da modalidade do gregoriano, motivaram reflexões e estudos tratados em pesquisas, aulas e conferências tanto centros de pesquisas de tradições como de história da música.
Em nível superior, o resultado desses estudos foram tratados em cursos de Estruturação, Estética e Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo a partir de 1972. O extraordinário significado de Pentecostes no calendário religioso e nas concepções de Igreja foi sempre salientado. Já em publicação para os estudantes do curso de Estruturação Musical do Instituto Musical de São Paulo, em 1972, lembrou-se, na ilustração de sua capa, da tradição segundo a qual o Papa Gregorio Magnus foi inspirado pelo Espírito Santo ao anotar o canto que é designado como gregoriano. No âmbito da área de Etnomusicologia, realizaram-se trabalhos de pesquisa por ocasião de festas do Espírito Santo em várias cidades do Estado de São Paulo, como em São Luís do Paraitinga e em Piracicaba.
Em 1974, foram tratados em encontros em Portugal no âmbito do primeiro ciclo de estudos luso-brasileiros e, no mesmo ano, no âmbito de projeto de estudos culturais e musicológicos sediado no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia.
Estudos na Europa
O projeto musicológico e de estudos culturais elaborado no Brasil teve como escopo lançar as bases para o desenvolvimento de uma musicologia de orientação teórico-cultural dirigida a processos em contextos globais. No primeiro encontro com musicólogos alemães e portugueses em Colonia, em dezembro de 1974, tematizou-se o significado da prática de novenas para os estudos musicológicos que relacionam procedimentos históricos e empíricos.
O patrimônio musical do Brasil é marcado por muitas novenas referentes às diferentes datas do calendário mariano, assim como de santos. Essas dedicações acompanharam desenvolvimentos da história religiosa e sobretudo hagiológica, correspondendo a pronunciamentos e decisões eclesiásticas, a devoções particularmente cultivadas pelas ordens, a santos padroeiros de localidades.
É compreensível, pela força expressiva e dramaticidade dos relatos bíblicos da vinda do Espírito Santo, que as novenas tenham sido de grande relevância na época colonial. Transformando-se na sua linguagem musical, mantiveram o seu significado no decorrer dos tempos, sobretudo em situações epocais marcadas por processos que correspondem a seus sentidos de expectação, de precedência a atos esperados, decisivos ou em rememoração de estados de espírito que os antecipam.
Com o pesquisador açoriano Armindo Borges, que juntamente com Maria Augusta Alves Barbosa participava do grupo de trabalho constituído para a consecução do projeto, deu-se continuidade aos aos estudos referentes aos elos com a tradição açoriana. A recepção de tradições festivas açorianas no passado Brasil é documentada pelas características da linguagem visual e de atos que correspondem àquelas conhecidas dos Açores.
A edificação de um "Império", os signos imperiais utilizados na simbólica da terceira pessoa da Trindade, coroações e cortejos de coroados, a distribuição de alimentos e muitas outras práticas não são ou não são mais conhecidas da Europa continental. Tudo indicaria, assim, que as comunidades nas quais essas tradições são cultivadas receberam essas expressões através de colonos ilhéus e que estas ter-se-iam mantido em gerações que os sucederam.
As concepções de Império e as expressões imperiais na linguagem visual das festas do Espírito Santo, exigindo estudos de seus sentidos, levaram a encontros e diálogos com teólogos e pesquisadores da história eclesiástica referentes à festa de Pentecostes após 50 dias da Páscoa e assim à Terceira Pessoa da SS. Trindade.
Estudos do século XIX
Pelo seu significado teológico e de fomento da religiosidade, a prática das novenas manteve-se e mesmo intensificou-se sob a ação dos intuitos restaurativos o no decorrer da reforma anti-secularizadora da vida religiosa e da sociedade no século XIX. Em 1897, a prática foi prescrita para todas as igrejas pela Encíclica Divinum illud munus pelo Papa Leão XIII (1810-1903).
Correspondendo às concepções litúrgico-musicais de época marcadas por tendências historicistas e retroativas, as obras marcadas pelo espírito restaurativo diferem nas suas dimensões e expressões de obras de maior envergadura e potência expressiva da tradição coro-orquestral combatida pelos reformadores restauracionistas. São mais breves, reservadas sob o ponto de vista musical, o que explica a menor atenção que têm despertado em estudos histórico-musicais. Não devem porém ser niglenciadas nos estudos voltados a análises de processos culturais.
Francisco Manoel da Silva (1795-1865)
Introduzindo o projeto de estudos elaborado no Brasil, salientou-se o significado do país para os estudos musicológicos, lembrando-se de compositores e obras, assim como da sua relevância para a Etnomusicologia. Lembrado foi Francisco Manoel da Silva que, como compositor do Hino Nacional, tem a sua linguagem musical presente até a atualidade, marcando a imagem do país.
A sua Novena do Espírito Santo, composição que merece extraordinária atenção, não só pelas suas qualidades musicais, como pelos seus sentidos e funções. Ela diz respeito ao Espírito Santo e assim a concepções do mais alto significado para os estudos musicais e á novena que precede a festa de Pentecostes e surge como a novena por excelência, modêlo de todas as novenas.
Esses estudos passaram a ser desenvolvidos em bibliotecas como a da Arquidiocese de Colonia, em institutos de ciências religiosas e missiologia, como o de St. Augustin e a seguir no Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos da Consociatio Internationalis Musicae Sacrae (Roma) em Maria Laach, fundado em 1977.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.