ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
Pange lingua foi um dos hinos eucarísticos levantados em pesquisas realizadas no Brasil na década de 1960 que foram considerados na Europa no âmbito de projeto brasileiro desenvolvido a partir de 1974. Principal marco do início desses estudos em âmbito internacional foi a festa de Corpus Christi em Colonia, em maio de 1975.
Os hinos eucarísticos, mais especificamente aqueles que remontam à Idade Média, criados ou atribídos a S.Tomás de Aquino (1225-1274), um dos maiorres vultos da história cultural do Ocidente, da história eclesiástica, da filosofia e da teologia, constituem temas da mais alta relevância para diferentes áreas de estudos, em particular da hinologia e da música sacra em geral. Essa extraordinária relevância expressa-se em vasta literatura sobre a sua vida e obra, em estudos tomísticos nos seus diferentes aspectos, na filosofia escolástica, ne historiografia cultural, na literatura medieval e também na musicologia.
Como outros hino criados ou atribuídos a S. Tomás de Aquino, foi cantado através dos séculos em atos devocionais da tradição católica e que foram transmitidos às regiões extra-européias no decorrer dos contatos, da colonização e missionação desde a época dos Descobrimentos.
Esse hino é uma prova da permanência de antigas concepções na cultura de países marcados pelo Catolicismo como o Brasil e, com o seu chamamento a que a língua cante, também de sentidos musicais. Dá testemnho da extensão e continuidade de convicções e práticas medievais em países de regiões alcançadas, conquistadas, cristianizadas e colonizadas pelos europeus à época dos Descobrimentos.
Significado
O Pange lingua é pelos seus sentidos e inserções contextuais, do mais alto significado para estudos musicológicos e culturais em geral. O seu estudo é indispensável não só para os estudos hinológicos e para o estudo cultural de tradições religiosas, mas sim também para uma musicologia de orientação cultural, e, de modo ainda mais amplo, para a inquirição de um sistema de visão do mundo e do homem que marca mentalidades e disposições psíquicas.
Esses hinos foram criados por ocasião da introdução da festa de Corpus Christi em 1264, mas nas suas origens e sentidos remontam a séculos anteriores, como testemunha o hino de Venantius Fortunatus (530-610). Já as suas primeiras palavras referem-se à língua, ao tocar ou cantar. A expressão encontra-se em Venantius Fortunatus, em hino criado ao redor de 569 ou 570 em louvor á Santa Cruz por motivo da oferta de uma partícula da cruz pelo imperador Justino II à rainha Radegundis para o seu convento em Poitiers. Essa referência indica relações de fundamental significado para os estudos do Brasil, a terra designada primeiramente como de Santa ou Vera Cruz, e na qual um dos primeiros atos dos europeus foi a do levantamento de uma cruz
Foi cantado durante os séculos durante a Semana Santa como parte do Ofício das Horas, assim como em atos de veneração da cruz na Sexta Feira da Semana Santa. Foi cantado rito moçarábico da Sexta Feira Santa e nos ofícios de Horas da época quaresmal em conventos e mosteiros beneditinos, no ato de adoração da cruz na Sexta Feira da Paixão e nas festas da Invenção e a da Elevação da Cruz. Entre os hinos, salienta-se aque de Tomás de Aquino. que é considerado como inspirado naquele de Venantius Fortunatus.
O Pange lingua deve ser estudado em relações com outros hinos criados ou atribuidos a Tomás de Aquino, salientando-se o Tantum ergo, este ainda mais difundido. O Pange lingua é mais abrangente que o Tantum ergo, uma vez que este se refere às suas duas últimas estrofes: Tantum ergo e o Genitori genitoque. Neste sentido, a consideração do Tantum ergo pressupõe aquela do Pange lingua. O texto contém conceitos que surgem como condutores para análises de sentidos do Tantum ergo, e esses conceitos dizem respeito ao canto, sendo fundamentais para o estudo de concepções musicais nas suas relações com imagens.
Festa de Corpus Christi
Como outros hinos eucarísticos, o Pange lingua deve ser considerado no contexto de concepções da real presença divina na hóstia com a transubstanciação do pão e do vinho no ato de consagração. Exposta à adoração, constitui o cerne da festa de Corpus Christi, assim como de atos de adoração do SS. Sacramento e de benção sacramentais. Na sua fundamentação teológica, esse mistério se baseia nas palavras de Jesus pronunciadas na última ceia. Essa referenciação torna compreensível também ter sido o Pange lingua cantado durante séculos na Quinta-Feira da Semana Santa.
Pange, lingua, gloriosi
Corporis mysterium,
Sanguinisque pretiosi,
Quem in mundi pretium
Fructus ventris generosi
Rex effudit gentium.
Nobis datus, nobis natus
Ex intacta Virgine,
Et in mundo conversatus,
Sparso verbi semine,
Sui moras incolatus
Miro clausit ordine.
In supremæ nocte cenæ
Recumbens cum fratribus,
Observata lege plene
Cibis in legalibus,
Cibum turbæ duodenæ
Se dat suis manibus.
Verbum caro panem verum
Verbo carnem efficit,
Fitque sanguis Christi merum;
Et si sensus deficit,
Ad firmandum cor sincerum
Sola fides sufficit.
Tantum ergo sacramentum
Veneremur cernui,
Et antiquum documentum
Novo cedat ritui,
Præstet fides supplementum
Sensuum defectui.
Genitori, genitoque
Laus et iubilatio,
Salus, honor, virtus quoque
Sit et benedictio,
Procedenti ab utroque
Compar sit laudatio. Amen
Pange lingua e Tantum ergo sob o aspecto da Semiótica
As estrofes do Pange lingua entoadas no Tantum ergo são de relevância para estudos de concepções referentes à percepção e a sinais. Nele decanta-se que a fé pode suprir o que os sentidos não percebem. Ela complementa essa incapacidade da percepção sensorial.
et si sensus deficit,
ad firmandum cor sincerum
sola fides sufficit.
praestet fides supplementum
sensuum defectui.
Essas concepções correspondem àquela de sacramento. Esse conceito deve ser considerado em análises, uma vez que marca não só o culto, tradições religiosas, como também visões da realidade, com consequências para a vida e expressões culturais de populações marcadaas pelo Catolicismo. Essas análises não podem resumir-se a distinções entre sinais - que sinalizam algo outro - signos e símbolos, como também emblemas ou alegorias. A noção de sacramento implica na acepção de presenciação de realidade outra daquela visível ou percebida pelos sentidos.
Desenvolvimento dos estudos
A festa de Corpus Christi, uma das principais de muitas igrejas e localidades do Brasil, salienta-se pela sua opulência e brilho, assim como pela participação de autoridades eclesiásticas e civís, representantes de diferentes instituições e grupos da sociedade, e da ativa da população, o que se manifesta na confecção de tapetes ornamentais com quadros religiosos confeccionadas com flores, vegetais vários e outros objetivos nas ruas pelas quais percorre a procissão com o ostentório com a hóstia consagrada sob o baldaquim.
Essa procissão é realizada com particular grandiosidade em determinadas cidades do interior de São Paulo e de bairros da capital, salientando-se aqui aqueles marcados pela presença portuguesa e luso-brasileira, como Santa Isabel. Essa processão foi alvo de observação participante em 1967. No âmbito do Museu de Artes e Técnicas Populares (Folclore) realizaram-se várias outras pesquisas.
Os estudos referentes ao Pange lingua partiram em grande parte daqueles voltados ao Tantum ergo, hino muito mais presente em atos devocionais de adoração do Santíssimo Sacramento e dos quais existem maior número de fontes documentais. Tradições da Irmandade do Santíssimo Sacramento e da prática de adoração perpétua na igreja de Santa Ifigênia foram consideras em entrevistas e participações.
O repertório hínico foi considerado no âmbito do Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão a partir de 1968. Foi tema de estudos de trabalho dedicado a estudos gregorianos e de música sacra em geral e que foram realizados em cooperações com pesquisadores vinculados à Faculdade Sedes Sapientiae de São Paulo, ao Studium Theologicum do Paraná e ao Instituo Pio X do Rio de Janeiro. Nesses encontros, não só a literatura respectiva foi levantada e considerada, como também discutida a partir da orientação teórica dirigida a processos culturais do movimento.
As reflexões tiveram continuidade em cursos da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo a partir de 1972. O Pange lingua foi considerado na sua relevância para estudos semióticos e do papel de concepções musicais nos seus sentidos filosóficos e teológicos.
Pange lingua e os estudos do século XIX
As fontes da tradição de cultivo de hinos no Brasil foram consideradas também com representantes da musicologia histórica, dirigindo-se aqui a atenção a difusão de obras européias, a paralelos com outros países americanos, e sobretudo à recepção e consequências da legislação litúrgico-musical. Neste sentido, considerou-se o papel dos hinos no processo de restauração da música sacra no século XIX e suas extensões no XX.
Entre as fontes analisadas, tratou-se com especial atenção um Pange lingua proveniente do vale do Paraíba. Esse hino, a duas vozes, foi cantado tradicionalmente na exposição do Santíssimo Sacramento de cidades como Taubaté, São Luís do Paraitinga, Lagoinhas e Cunha
As cópias das partes comprovam ter sido cantado ainda na década de 1920, ou seja, em época na qual se processavam as reorientações da prática sacro-musical em obediência às prescrições litúrgico-musicais restaurativas referenciadas segundo o Motu Proprio de Pio X de 1903. A atenção foi dirigida ao fato do Pange lingua surgir nas partes ao lado do hino O salutaris, o precedendo ou sucedendo. O canto de ambos os hinos eucarísticos no mesmo contexto devocional indica o cuidado dado pelos responsávels pela música nas igrejas ao sentido dos cantos escolhidos e aos estreitos elos quanto ao conteúdo entre O salutaris hostia e o Pange lingua.
Essas reflexões partidas do Pange lingua ofereceram impulsos fundamentais para um direcionamento da pesquisa musicológica de orientação cultural. Essa perspectiva antropológico-simbólica, intrínseca a expressões de culto, devocionais e festivas marcou desenvolvimentos posteriores.
Desenvolvimentos subsequentes
Importante marco nesses estudos foram diálogos levados a efeito em Maria Laach, Alemanha. A abadia beneditina de Maria Laach, junto ao lago do mesmo nome da região de Eifel, uma dos principais monumentos da arquitetura medieval da Alemanha e mesmo da Europa, é, com a sua biblioteca e o Instituto de Estudos de Ciência da Liturgia Abt von Herwegen, um centro de estudos de história eclesiástica e sacro-musicais, em particular do canto gregoriano. Junto a ela, estabeleceu-se em 1977, o Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos da Consociatio Internationalis Musicae Sacrae (CIMS), organização estreitamente vinculada com o Istituto Pontificio di Musica Sacra de Roma.
A temática foi discutida nos preparativos de trabalho de doutoramento no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia, levando a tese sobre a música sacra em São Paulo no séculoi XIX e que foi defendida em 1979. Com base nesses estudos, realizou-se o I Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira em 1981, quando então fundou-se a Sociedade Brasileira de Musicologia.
Com a fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical no Mundo de Língua Portuguesa, em 1985, a atenção foi dirigida ao Pange lingua em outras regiões do globo marcadas culturalmente pelos portugueses.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.