ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
O Requiem (missa pro defunctis) vem sendo há muito objeto de estudos, não só religiosos, litúrgicos, teológicos e de história eclesiástica, mas também naqueles referentes à música sacra e musicológicos em geral. A sua consideração no âmbito da música sacra é indispensável, o que se expressa na literatura e em gravações. Na musicologia em geral, o Requiem também exibe e tem merecido particular atenção. Grandes vultos da história da música dedicaram-se ao Requiem na sua obra, podendo-se mencionar, entre muitos outros, M. A. Charpentier, W. A. Mozart, L. Cherubini, G. Verdi, J. Brahms, H. Berlioz, A. Bruckner e A. Dvorák. Essas obras foram tratadas por diferentes autores, analisadas e estudadas no âmbito da produção musical de compositores, na sua linguagem e meios expressivos, assim como nos seus contextos epocais e culturais.
Esses estudos e análises consideram e revelam aspectos composicionais, da linguagem musical, do tratamento do texto nas suas relações com sentidos e função do Requiem. Contribuem de forma relevante não só aos estudos teórico-musicais como também histórico-culturais. A sua consideração impõe-se na formação de pesquisadores, mesmo daqueles que não se dedicam a questões concernentes à assuntos religiosos e à música sacra.
Esses estudos devem ser conduzidos sob perspectivas estritamente científicas, independentemente de elos religiosos e confessionais dos pesquisadores. Exigem perspectivas e procedimentos adequados a estudos culturais, considerando-se as suas inserções em processos históricos e sócio-culturais, assim como à sua função e efeitos sócio-psicológicos para indivíduos e comunidades.
O seu texto deve ser analisado sob o aspecto literário, da história da literatura, da hermenêutica, sendo que a análise de seus sentidos surge como de particular relevância para estudos de concepções antropológicas intrínsecas. Esses estudos dizem respeito ao condicionamento cultural de sociedades, a seus fundamentos, contribuindo ao reconhecimento e à análise de um edifício de visões do mundo e do homem de remotas origens que continuam vigentes. Estudos assim conduzidos possuem uma função esclarecedora.
Numa atenção dirigida a processos impõe-se que o olhar seja voltado a contextos globais. Os estudos não podem restringir-se à Europa, mas devem considerar a expansão religioso-cultural do Ocidente às regiões extra-européias desde a época dos Descobrimentos, assim como as interações em reciprocidade que desde então marcaram os desenvolvimentos.
Os desenvolvimentos em países marcados pelos europeus a partir de primeiros contatos, encontros, de atividades missionárias e de estabelecimento de estruturas eclesiásticas devem ser considerados não só sob a perspectiva histórica. A consideração de países que foram alvo da expansão européia, de missões e de colonizações como o Brasil - visto como sendo tradicionalmente a maior nação católica do mundo - passa a adquirir grande relevância nos estudos conduzidos na Europa. A consideração de compositores e obras do Brasil torna-se indispensável para os estudos sacro-musicais em geral. O reconhecimento dessa importância é que tem determinado os estudos e as iniciativas do projeto brasileiro de desenvolvimento de uma musicologia de orientação culturológica em contextos globais desde a sua internacionalização em 1974.
Desenvolvimentos no Brasil
Os estudos do Requiem no Brasil são de longa data. Intensificaram-se na década de 1960, em anos que se seguiram ao Concílio Vaticano II (1962-1965). As mudanças litúrgico-musicais dele decorrentes suscitaram entusiasmo renovador e preocupações. Motivaram estudos de práticas e repertórios até então vigentes, de concepções sacro-musicais que se orientavam segundo documentos eclesiásticos como o Motu Proprio de Pio X (1903) e que se inseriam em tradição de movimento de restauração religiosa que remontava ao século XIX. A difusão de correntes européias, de ideário, normas da legislação eclesiástica e de orientações e procedimentos de ordens religiosas passou a ser objeto de especial atenção no âmbito de movimento de renovação de perspectivas nos estudos culturais e musicais e que levou à criação do Centro de Pesquisas em Musicologia em São Paulo.
Em grupo de trabalho dedicado ao Gregoriano e á música sacra em geral, formado em 1969, o Requiem foi objeto de atenção e estudos. Não só a literatura específica e histórico-musical em geral foi considerada. Em pesquisas de acervos particulares e arquivos, procurou-se levantar composições do Requiem de diferentes contextos e épocas de autores brasileiros, assim como aquelas do repertório europeu cultivadas em igrejas do Brasil. Nelas foram examinadas tanto obras do início do século XIX como aquelas das últimas décadas anteriores ao Concílio.
Esses estudos tiveram continuidade em nível superior a partir de 1972. Em cursos de Estruturação da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo, consideraram-se resultados de pesquisas com base em publicações disponíveis.
Desde 1974, os estudos foram conduzidos em âmbito internacional na Europa, em Portugal no contexto do primeiro ciclo de estudos luso-brasileiros de musicologia e de estudos culturais realizado nio início de 1974 e, a seguir, a partir da Alemanha, sendo sediados no Instituto de Musicologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de Colonia.
O Requiem foi um dos temas considerados no projeto elaborado no Brasil e que tinha como objetivo contribuir ao desenvolvimento de uma musicologia orientada segundo processos culturais em contextos globais a partir de fontes levantadas no Brasil. Um marco nesse desenvolvimento foi a realização de jornadas de estudos em Roma por ocasião da Semana Santa , em março de 1975.
Aspectos de ordenação e estrutura
A consideração da estrutura da missa de Requiem, da ordenação de suas partes foi reconhecida desde o início dos estudos como necessária para as análises de obras, não só daquelas de compositores brasileiros levantadas em pesquisas. As primeiras aproximações tinham levantado questões devido às diferenças do Requiem relativamente a outras missas.
A missa de Requiem diferencia-se de outras missas pelo fato de não conter determinadas partes do Ordinarium como Gloria e Credo, o que é compreensível pelo sentido da missa pro defunctis, mas incluir partes do Proprium, Introitus e Gradual. No lugar do Halleluja tem-se um Tractus e a sequência Dies irae.
Em geral, o Requiem inclui assim partes do Ordinarium e do Proprium: Introitus (Requiem aeternam…), Kyrie, Sequenz (Dies irae), Offertorium (Domine Jesu Christe), Sanctus und Benedictus, Agnus Dei, Communio (Lux aeterna). O Gloria e o Credo, como partes do Ordinarium, não são cantados ou recitados, não sendo assim tratados pelos compositores. Por outro lado, compositores consideraram nas suas obras partes do Proprium, como o Introitus e o Offertorium. Nas obras consideradas de compositores brasileiros e europeus, constata-se o papel desempenhado pelo gregoriano como base e ponto de partida de composições.
Foco: século XIX
A partir de 1974, a missa de mortos foi considerada tanto no âmbito evangélico como católico em estudos conduzidos com Volker Gwinner (1912-2004) na Johannes-Kantorei de Lüneburg e na Escola Superior de Música de Hannover, sob o aspecto morfológico na Escola Superior de Música de Colonia e, na musicologia, sob o aspecto histórico-musical e etnomusicológico no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia. Estudos da literatura eclesiástica e teológica foram realizados na biblioteda da Arquidiocese de Colonia.
O foco dos estudos foi o século XIX. A celebração do Ano Palestrina em 1975 suscitou estudos histórico-musicais da época tridentina e de continuidades nos séculos que se seguiram. Uma particular atenção foi dada ao stilo antico e à prática a cappella em composições. Obras de compositores de diferentes épocas foram consideradas em cursos e diálogos.
A atenção voltou-se sobretudo ao restauracionismo sacro-musical no século XIX, o século da Restauração e do Historismo, em particular do Cecilianismo, questionado sob o aspecto de visões e procedimentos. No âmbito do projeto editorial sobre as culturas musicais na América Latina no século XIX então em desenvolvimento, o Requiem na obra de compositores latino-americanos foi considerado também sob o aspecto de tradições mortuárias de difentes sociedades e contextos. Esses estudos relacionaram-se com aqueles do projeto brasileiro. Foram conduzidos juntamente com pesquisadores portugueses.
Nos estudos realizados durante a Semana Santa em Roma, em 1975, dedicou-se particular atenção a compositores brasileiros do século XIX marcados por vínculos de obediência particularmente estreitos com o Vaticano, salientando-se Tristão Mariano da Costa, compositor de Itú que dedicou uma de suas obras a Leão XIII (1810-1903), pontífice entre 1878 e 1903. O seu Requiem foi analisado e considerado no contexto marcado pela cultura religiosa de Itú, um centro do movimento restaurador em São Paulo. Entre os aspectos considerados sob o aspecto de sua orientação religiosa marcada por estremada piedade, constatou-se a inclusão de um Pie Jesu no final do Dies irae, antes do Agnus Dei.
A partir do levantamento de composições de missas de defuntos por compositores brasileiros, considerou-se o papel desempenhado pelo Requiem e de sentidos de textos como o Dies irae no movimento anti-secularizador em contextos e regiões marcadas por expansões, desenvolvimentos econômicos, sociais e de progresso material como São Paulo no século XIX. A temática foi tratada em colóquios de musicólogos e doutorandos no Instituto de Musicologia de Colonia no âmbito do preparo de uma tese apresentada em 1979.
A mais antiga fonte
A mais antiga fonte encontrada e estudada nas pesquisas realizadas em São Paulo na década de 1960 foi um Ofício e Missa de Defuntos da tradição sacro-musical de cidades do vale do Paraíba. A obra, de autor desconhecido, foi conservada em cópias realizadas em 1872 e 1909, comprovando ter sido executada em ofícios e missas de defuntos durante várias décadas. As partes indicam que as vozes - Tiple, Altus, Tenor e Baixa - foram acompanhadas por instrumentos de sôpro - flauta, clarineta, trombone, pistão e baixo - o que pode ser compreendido pela participação dos músicos em préstito de sepultamento que se seguia à celebração.
Foi ofício e missa celebrados pelo Pe. Pedro José da Veiga em cidades como Cunha e São Luís do Paraitinga, tendo atuado nesta cidade entre 1851 e 1854. Foi o primeiro vigário de Natividade da Serra. A obra, pelas suas características estilísticas tem origens mais antigas, remontando ao século XVIII, tendo-se mantido na tradição local, sendo recopiada e reinstrumentada em diferentes épocas. Cogitou-se, nos estudos, se ela não teria uma origem portuguesa, tendo sido trazida por sacerdotes, uma vez que a presença e a intensa atuação de párocos portugueses no passado era ainda lembrada na década de 1960. Essas reflexões despertaram particular interesse entre os pesquisadores portugueses participantes do projeto brasileiro de desenvolvimento de uma musicologia dirigida a processos em contextos globais na Europa.
Desenvolvimentos subsequentes
Importante para o desenvolvimento das reflexões foram diálogos com Cleofe Person de Mattos (1913-2002) durante as suas estadias na Europa, então dedicada ao estudo do Requiem do Pe. José Maurício Nunes Garcia (1787-1830). Neles evidenciou-se a necessidade de estudos mais abrangentes, teológicos, de história eclesiástica e de tradições para a melhor situação dessa obra em processos histórico-culturais. Os estudos, que tiveram a sua expressão em artigo publicado na primeira coletânea de pesquisadores musicais brasileiros publicada no Vaticano em 1980, deviam suscitar debates no I Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira realizado em 1981 pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo a partir da tese defendida em 1979.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.