ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
Sacris solemniis, um dos hinos de S. Tomás de Aquino (1225-1274), foi objeto de estudos e reflexões realizados na Europa desde 1974. Os trabalhos basearam-se em fontes brasileiras levantadas em pesquisas na década de 1960. Inseriram-se em programa de estudos voltados ao desenvolvimento em cooperações internacionais de uma musicologia de orientação teórica dirigida à análise de processos em contextos globais, um projeto elaborado no Brasil e realizado com o apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) a partir de 1975.
Um marco no desenvolvimento dos estudos na Europa foi ciclo de trabalhos levado a efeito em Mannheim, em 1975.
O hino Sacris solemniis
O Sacris solemniis é um dos cinco hinos compostos ou atribuídos a S. Tomás de Aquino, criados por ocasião da instituição da festa de Corpus Christi em 1264 pelo papa Urbano IV (1261-1264). Nele decanta-se a real presença de Cristo na hóstia consagrada e é nesse seus sentidos e funções que deve ser considerado nos estudos culturais e musicais.
Compreende-se, nesse sentido as suas relações quanto a conteúdo com outros hinos eucarísticos. As suas duas últimas estrofes constituem o texto do hino Panis Angelicus. O texto sacris solemniis, palavras iniciais de um hino da Matutina do ofício noturno da festa de Corpus Christi, difundiu-se na Europa em várias versões cantadas, sendo assim transplantado para as regiões extra-européias descobertas e cristianizadas sobretudo pelos portugueses e espanhóis, dando origens a várias composições.
O texto permite análises de sentidos de significado para a compreensão de concepções e imagens que foram transmitidas através dos séculos. Já de início, o texto salienta o canto de vitória que soa do fundo do coração em união com alegria na solenidade sagrada, assim como concepções centrais de seus sentidos: o velho é superado, tudo é novo, corações, vozes e obras.
Sacris solemniis
iuncta sint gaudia,
et ex praecordiis
sonent praeconia;
recedant vetera,
nova sint omnia,
corda, voces, et opera.
(…)
Significado para estudos culturais
O hino Sacris solemniis deve ser considerado com grande atenção nos estudos culturais e musicológicos referentes ao Brasil. Cantado em ofícios da festa de Corpus Christi, insere-se em contexto festivo dos mais importantes do calendário de festas católico, marcando a vida religiosa e cultural de numerosas comunidades e cidades brasileiras. A procissão do Corpus Christi, nas quais o ostensório com a hóstia consagrada sob baldaquim é levado pelas ruas, em muitas localidades cobertas com tapetes ornamentais, demonstra o significado de concepções e conviçcões centrais do Catolicismo na vida de populações.
As festas de Corpus Christi no Brasil e em outros países, na magnificência de suas expressões, documentam a permanência através dos séculos e para além do oceano de uma tradição remontante à Europa do século XIII, cujos sentidos, porém, são muito mais remotos.
As pregações adquirem na festa de Corpus Cristi extraordinária relevância devido à importância das concepções sacramentais tratadas. A Matutina, constituída por dois ou três Noturnos, estrutura-se em alternância responsorial de salmo e antífona, seguidos por um hino correspondendo ao sentido da festa. Cada Noturno, com vários salmos, é seguido por uma leitura. Segue a leitura do Evangelho do domingo ou da solenidade, seguido do Te Deum.
Na tradição brasileira, o Sacris solemniis foi conhecido como Recitado ou Solo ao Pregador, sendo cantado antes da pregação da festa de Corpus Christi. O texto e música do solo ao pregador variava dependentemente da festa celebrada. Naquelas marianas, cantava-se uma ária ao pregador, podendo ser a oração Ave Maria.
Desenvolvimento dos estudos
Há uma vasta literatura teológica, religiosa e mesmo sacro-musical que diz respeito a sentidos decantados no Sacris solemniis. Do ponto de vista dos estudos culturais, a atenção a essa tradição foi despertada no âmbito de estudos das procissões de Corpus Christi, já de grande aparato e significado à época colonial. Procissões em vários bairros de São Paulo e em cidades do interior, em particular naquelas do vale do Paraíba, foram estudadas há muito por pesquisadores de tradições populares, entre outros no Museu de Artes e Técnicas Populares da Associação Brasileira de Folclore na década de 1960.
A descoberta de manuscritos do hino Sacris solemniis em diferentes cidades, levou a estudos desenvolvidos no Centro de Pesquisas em Musicologia criado no âmbito do movimento de renovação de perspectivas nos estudos culturais e musicais a partir de 1966. Em círculo formado para estudos do Gregoriano e da música sacra em geral sob a orientação desse movimento, voltada à análise de inserções de tradições em processos culturais e de seu papel no condicionamento de mentalidades e de psique, passou-se a examinar com atenção o texto desse canto e a linguagem musical das obras que o tratavam. Esses exames foram conduzidos em estreito relacionamento com aqueles de outros textos referentes à festa de Corpus Christi.
Uma das obras consideradas, uma composição de André Gonçalves Paixão, proveniente de pesquisas realizadas no vale do Paraíba, em São Paulo, despertou particular atenção sob o aspecto musicológico, teológico e da história cultural e eclesiástica do século XIX, vindo ao encontro do interesse por essa época no âmbito de projeto editorial concernente às culturas musicais da América Latina no século XIX então em andamento. Essa fonte revelou-se como uma das mais extraordinárias obras do repertório sacro-musical desse século, não só do Brasil. Esse significado levou a que fosse incluída na programação do I Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira, realizado em São Paulo, em 1981.
Em nível superior, tratou-se de concepções de percepção intrínsecas àquelas de sacramento e transubstantiação em aulas de Estética e Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo a partir de 1972. Os educadores, em cursos de Licenciatura, deviam receber subsídios para que compreendessem os sentidos de práticas festivas e suas concepções no meio em que viviam e atuavam, e que também condicionavam culturalmente os educandos.
A partir de 1975, os estudos tiveram prosseguimento em nível internacional a partir da Universidade de Colonia. Em círculo de pesquisadores portugueses, brasileiros e alemães, considerou-se as festas de Corpus Christi em diferentes regiões extra-européias marcadas pelos portugueses.
Significado para estudos imagológicos
Os sentidos do hino dizem respeito à transubstanciação, ao ato que, na liturgia, rememorando a última ceia, fundamenta a concepção de que pão e vinho consagrados tornam-se corpo e sangue de Cristo. A adoração do Corpus Christi diz respeito à concepção de sacramento, a sinal que não sinaliza outro, que não é somente signo, símbolo ou alegoria, mas que corporifica, presencia e atualiza o invisível, o que não pode ser percebido pelos sentidos. Essas concepções são de fundamental significado para estudos culturais em contextos católicos, uma vez que dizem respeito à compreensão da realidade e à percepção do mundo e do homem.
O texto salienta de início a alegria que deve haver nessa solenidade sagrada, soando do fundo do coração o canto de louvor. Já essas palavras iniciais revelam o significado do hino para estudos referentes a concepções musicais. A seguir, decanta-se a razão desse júbilo e do canto de louvor: o que era velho foi superado, e tudo tornou-se novo, coração, vozes e obras. O fundamento dessa renovação é lembrado: celebra-se á noite em rememoração da última ceia.
A mais importante obra
A obra mais significativa do hino Sacris Solemniis levantada em pesquisas é o Recitado para o Pregador da tradição do vale do Paraíba, composto ou atribuído a André Gonçalves Paixão, remontando à década de 1830. Esse nome, como autor ou copista, é encontrado em muitas obras da região. Trata-se de uma obra solística de grande envergadura e expressividade, que documenta a formação técnico-musical do seu compositor e o alto nível qualitativo da prática musical nos centros musicais da região. Ela exige sobretudo um cantor de excepcionais qualidades vocais. Correspondendo à importância de festas do Corpus Christi em cidades como Guaratinguetá, São Luís do Paraitinga e Cunha, é uma das obras musicais mais brilhantes do repertório sacro-musical.
A partir das suas partes, elaborou-se a partitura geral em 1972, publicada em edição interna para uso do Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista criado no Instituto Musical de São Paulo.
Desenvolvimentos subsequentes
Com a fundação do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos com centro de estudos junto á abadia de Maria Laach, a atenção passou a ser voltada aos sentidos teológicos do texto nas suas dimensões globais e significado para a atualidade.
A colocada à disposição para ser executada em missa festiva celebrada na Igreja da Ordem Terceira do Carmo por ocasião do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira em São Paulo, em 1981.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.