ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
Salve sancta Parens, um hino a Santa Ana, mãe de Maria tem sido há muito objeto de estudos. Como Introitus da missa votiva de Maria o Salve sancta Parens foi considerado nos estudos gregorianos, orientandos sobretudo pelo artigo de Lucien David L'Introït Salve sancta Parens publicado em 1920 na Revue de Chant grégorien (VI, pág. 167). O louvor Salve, sancta parens do Introitus da missa votiva entoada em festas de Nossa Senhora constitui o início do hino Salve sancta parens devotado a Ana.
O Salve sancta Parens foi tema de estudos realizados no Brasil, em Portugal, em Roma e na Alemanha na década de 1970. Os estudos colóquios inscreveram-se em projeto de desenvolvimento de uma musicologia orientada segundo estudos de processos culturais em contextos globais elaborados no Brasil. Foi sediado no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia.
Sentidos e imagens
O hino adquire, pelas concepções e imagens transmitidas pelo seu texto, significado da maior relevância para estudos culturais sob diferentes aspectos. O Salve sancta Parens oferece um rol de imagens de grande relevância para o estudo da linguagem visual de tradições cristãs. Permite ao estudioso dessas tradições reconhecer significados de imagens, símbolos e sinais.
Anna, labe carens, Vas caelestis roris / Mater gratiosa, Pietate grata, Stirpe generosa, Prole sublimata /Prolem paris trinam, Unam praedecoram, Stellam matutinam et solis auroram / Iam in summo poli, Vides collocatam; Iunctam vero soli, Stella ex te natam / Ergo gratulare, Tanta prole digna, Nosque consolare, Dulcis et benigna. O flos mulierum, Fac per tuam prolem, Nos in caelis verum, Contemplare solem / Deus laus immensa, Qui caelesti manna, Nos in sua mensa, Recreet cum Anna.
Salve Sancta Parens decanta Ana como aquela que concebeu a mãe do Redentor. É louvada como sendo livre de deturpação, vaso do maná divino, como mãe cheia de graças, agraciada pela piedade, de grandiosa estirpe, sublimada pela prole. Decanta que gerara uma trina prole, uma delas a mais bela, a estrela matutina e aurora do sol. Agora via nas alturas celestiais a estrela que dela nascera ao lado do verdadeiro sol, mit ihm verbunden. Deve-se congratular por ter sido digna dessa prole e consolar-nos, doce e benigna. Suplica-se a ela, como flor das mulheres que, através de sua prole, que se possa contemplar o verdadeiro sol nos céus. Cabe a Deus o mais imenso louvor, que com o maná celestial com Ana na sua mesa recria os fiéis.
Significado para estudos culturais
O debates trouxeram à consciência a necessidade de revisões da literatura concernente ao culto de Ana. Discutidas foram explanações que partiram de uma deficiência de dados sobre Ana nas Escrituras, de um culto que teria sido marcado por fontes apócrifas ou tardias. Questionam-se hipóteses relativas à concepções da maternidade de Ana a partir de intentos de justificação da concepção imaculada de Maria, sendo esta não defendida por vários pensadores medievais.
Essas explanações que se encontram na literatura histórico-religiosa, hagiográfica e mesmo sacro-musical dificultam o estudo dos fundamentos de tradições e práticas devocionais que se mantiveram através dos séculos e o papel da música nelas desempenhado. Elas não são apropriadas ao estudo de concepções que se manifestam na linguagem visual em igrejas e representações de fundamental significado para estudos das artes e tradições de Portugal e das regiões colonizadas ou marcadas pelos portugueses.
Os exames imagológicos das tradições, que revelam um edifício de concepções do mundo e do homem nas suas relações com o mundo natural - a partir de um posicionamento no hemisfério norte - na sua coerência, não permitem relativações como aquelas constatadas na literatura.
Ana, como mãe de Maria, como decantada no hino, diz respeito a concepções de fundamental significado para um sistema de concepções antropológicas da Antiguidade e que se mantiveram em expressões tradicionais do culto mariano.
Desenvolvimento dos estudos
Um marco nos estudos concernentes à Ana como mãe de Maria sob o aspecto musical foi a descoberta de um hino a Ana do século XIX no decorrer de pesquisas realizadas no Nordeste do Brasil em 1972.
Trata.se da obra Anna Parens a 3 para 2 violinos, 2 tiples, baixo, cello, trompas, piston em lá e clarinete de Manoel Nunez de Barros Leite, proveniente de Penedo, Alagoas, e que traz a data de 26 de julho de 1857. Essa data indica ter sido composta e executada na festa de Santa Ana, documentado o significado do culto da mãe de Maria em cidade marcada na sua história, arquitetura e música pelo marianismo em tradição franciscana.
A descoberta dos manuscritos for acompanhada por estudos que procuraram considerar a obra e a devoção de Ana nas suas inserções em processos históricos da cidade, da região do São Francisco e do Nordeste em geral. Procurou-se, de início, fontes de informação a respeito do compositor como membro de família de músicos a partir de aproximações genealógicas.
Os resultados dessas pesquisas de 1972 constituiram ponto de partida para estudos posteriores. Como publicados posteriormente,, as pesquisas então realizadas dirigiram a atenção à família Barros Leite, recordando nomes de vultos da história eclesiástica e civil de Penedo, entre êles o padre Antonio Craveiro de Barros Leite (†1853), professor de latim e um dos benfeitores da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, onde todos os sábados cantava a missa; o Pe. Luiz José de Barros Leite, um dos dois penedenses enviados como deputados à Côrte em Portugal em 1821; seu pai, José Gregório da Cruz, capitão-mor das ordenanças na época da revolução de 1817, e, sobretudo, Manoel Joaquim Fernandes de Barros Leite (1802-1840), descendente por parte da mãe do fidalgo português Jorge de Barros Leite e que exerceu altos cargos em Sergipe.
Manoel de Barros Leite, desde 1822 em França, doutorou-se em medicina em Estrasburgo em1829 e em ciências físicas em Paris, onde bacharelou-se também em letras. Após viajar por vários países da Europa, demorou-se em Maceió e casou-se em Sergipe, onde teve um filho. O seu primo, Antonio Luiz Dantas de Barros Leite, foi senador por Alagoas.
Nesses estudos, publicados segundo o estado dos conhecimentos na década de 1970 na Correspondência Musicológica da Sociedade Brasileira de Musicologia, salientou-se Isaac Newton de Barros Leite (1851-1907), autor de léxico de extraordinário significado para estudos musicológicos no Brasil.
Aspectos das analises
A composição, na sua linguagem musical, revela a capacidade teórico-musical e criadora do seu autor e de uma tradição sacro-musical remontante a um período de apogeu econômico e cultural de Penedo no século XVIII e início do XIX. Nas suas características, indica a permanência ou retomada de uma tradição da prática instrumental, em particular violinistica de um passado que pode ser analisado em contextos globais em paralelos com aquele do pré-classicismo europeu.
Nos estudos desenvolvidos em São Paulo após a descoberta dos manuscritos, considerou-se a similaridade dessa linguagem musical com aquela de obras do vale do Paraíba, onde es constatara a recepção de obras da Escola de Mannheim, assim como de compositores da escola napolitana, como Giovanni Paisiello (1740-1816). A difusão e o cultivo em Penedo de obras de compositores portugueses que atuaram no Brasil no início do século XIX como Marcos Portugal (1762-1830) pôde ser comprovada nos estudos de fontes realizados em Penedo.
Desenvolvimentos subsequentes
Os estudos de expressões marianas que teve como um de seus marcos o ciclo realizado em Mannheim em 1975, tiveram continuidade nos anos que se seguiram. Foram apresentados e discutidos a partir de fontes levantadas no Brasil em colóquios de doutoramento no Instituto de Musicologia de Colonia e que levaram a defesa de tese em 1979.
O tratamento de temas mariológicos sob a perspectiva dos estudos culturais desenvolveu-se em estudos e cooperações realizados em Maria Laach, histórica abadia beneditina situada às margens de um lago na região vulcânica de Eifel, um dos centros da veneração de Maria e dos estudos marianos na Alemanha.
Na biblioteca e em colóquios com monges e estudiosos do Instituto Abt von Hervewegen, considerou-se em Maria Laach a literatura teológica e histórico-religiosa especializada. Esses estudos deram continuidade áqueles desenvolvidos no ciclo de Mannheim, uma vez que também essa abadia era marcada na sua história pela presença de Jesuítas entre 1863 e 1892. No decorrer de um edito de secularização à época napoleônica, a abadia benediina tnha sio extinta em 1802. Após pertencer em parte a particulares e ao govêrno prussiano, foi adquirida por proprietários entre os quais um deles era Jesuíta, A antiga abadia tornou-se um dos maiores centros de formação de religiosos.
Na esfera da irradiação dessa abadia instalou-se em 1977 o centro de estudos do Instituto de Estudos Hinológicos e Musicológicos vinculado à Consociatio Internationalis Musicae Sacrae e ao Istituto Pontificio di Musica Sacra de Roma. Conduzidos em estreitas relações com o projeto musicológico elaborado no Brasil, os estudos foram desenvolvidos no departamento de Etnomusicologia. O escopo da instituição era o de realizar estudos científicos que fornecessem fundamentos científicos para intuitos de criação musical adequada às diferentes culturais decorrentes do Concílio Vaticano II.
O estudo de fontes brasileiras procurou trazer à consciência de teólogos e etnomusicólogos que, em países com uma história marcada pelo Cristianismo. os estudos não podem partir de um estágio inicial de contatos e interações, As reflexões concernentes à m´úsica sacra e à sua prática em países extra-europeus devem considerar processos já há muito em andamento.
Os estudos do Salve sancta parens foram designificado no planejamento do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira realizado em São Paulo, em 1981, no âmbito do qual fundou-se a Sociedade Brasileira de Musicologia. A obra foi considerada em nova estadia de estudos e contatos em Penedo em 1980 à época da preparação da sociedade.
Após a fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical no Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS), em 1985, o estudo da veneração de Ana sob o aspecto dos estudos culturais em contextos globais amplicou-se a outras regiões marcadas pela presença portuguesa, na África e no Oriente. As concepções relacionadas com Ana nas tradições populares e em cultos considerados como sincretísticos foram tratadas no II Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira dedicado ao tema Tradições Cristãs e Sincretismo no Brasil, realizado na região do Reno em 1989. Os elos das concepções de Ana com a antiga mitologia foram objeto de estudos em encontros, conferências, aulas e seminários nos anos que se seguiram, salientando-se aqueles referentes à música na linguagem visual, na mitologia e nos estudos da Antiguidade realizados nas universidades de Bonn e Colonia a partir de 1997.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.