ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
A Semana Santa, a última semana do período quaresmal, entre o Domingo de Ramos e a Páscoa, apeser de ser uma semana de dor, de lamentações e de silêncio, constituiu sempre um dos principais períodos do calendário religioso também sob o aspecto da prática sacro-musical em cidades de muitos países europeus e da América Latina.
As expressões e tradições da Semana Santa adquirem especial relevância para os estudos culturais e musicológicos de orientação cultural. Na dramaticidade das ações litúrgicas e paralitúrgicas, sobretudo nas procissões, em particular naquelas do Enterro, transmitiram-se através dos séculos formas de expressão e representação do mais alto significado para estudos de encenações e imagologia nas suas relações com visões do mundo e do homem. A Semana Santa é marcada por rememorações de decorrências últimas da vida de Cristo na terra e a perspectiva histórica retroativa, a memória, determina também o pêso dado à tradição, às imagens históricas, às obras musicais consuetudinárias, à permanência de antigas praticas do cantochão e do stilo antico em motetes de procissão.
Essas obras tradicionalizadas desempenham papel relevante na auto-consciência de comunidades. Elas contribuem de forma relevante à caracterização de paróquias, irmandades e cidades. Assim como as históricas imagens levadas em procissão, também a música, ainda que em diversas fases de sua tradicionalização, possui a sua história. A introdução de repertórios, a difusão de obras em contextos regionais e suas adaptações e aceitações coletivas são alguns dos aspectos que constituem objeto de estudos de uma pesquisa dirigida a processos .
Desenvolvimento dos estudos
Os estudos mais sistematicamente conduzidos referentes à música em tradições da Semana Santa no Brasil tiveram o seu início no início da década de 1960. Essas tradições constituiram uma das principais preocupações de Andrelino Vieira, compositor, regente e professor, natural de Sant’Ana do Parnaíba mas que, como diretor do Conservatório Osvaldo Cruz, dedicava-se a também a estudos referentes à região do vale do Paraíba, região natal e de primeira formação desse vulto das ciências do Brasil.
A intensificação de interesses por estudos de tradições musicais da Semana Santa em São Paulo deu-se através da observação participante em celebrações e procissões em São Paulo, a partir de 1966. São dessas participações que provieram importantes materiais que serviram a estudos nos anos seguintes.
Uma dos aspectos em geral pouco considerados disse respeito à função da música em atividades internas da igreja nas celebrações do Triduum da Semana Santa. A atenção tinha sido dirigida ou às expressões musicais em procissões externas ou ao Gregoriano e a obras a cappella, ou com acompanhamento instrumental ou de órgão nos ofícios. Para a consideração do desenrolar dos atos e dos cantos na sua estruturação impunha-se a realização de estudos de história da liturgia. Esses não podiam basear-se somente nos livros eclesiásticos, mas também considerar a prática constatada em fontes musicais. Como a participação de regentes e cantores era menos significativa nesses atos, os cantos raramente foram anotados ou conservados como o foram obras de maior envergadura.
Um dos primeiros empreendimentos realizados no âmbito do Centro de Pesquisas em Musicologia da sociedade Nova Difusão, registrado em 1968, foi o de uma viagem de estudos a Minas Gerais com o objetivo primordial de observação e estudos da Semana Santa em São João João del Rei e em outras cidades.
Os resultados dessas observações, apresentados em conferências e aulas, entre outras no Museu de Artes e Técnicas Populares de São Paulo, tematizaram a necessidade de novas perspectivas no estudo de práticas tradicionais de cantos e de suas realizações sonoras nas suas relações e interações com a prática da música coro-orquestral de compositores do passado das diferentes regiões.
Nos estudos superiores, os motetos foram tratados em cursos de Estruturação e História da Música, conduzidos em estreito relacionamento com as áreas de Etnomusicologia e Estética. Concertos motetísticos foram realizados pelo Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista, conjunto vocal-instrumental criado no âmbito dessas áreas. A discussão musicológica foi conduzida paralelamente no âmbito do Collegium Musicum de São Paulo.
Os estudos histórico-musicais da Semana Santa foram intensificados com o descobrimento no decorrer de pesquisas no Nordeste do Brasil da Semana Santa do compositor português Teodoro Ciro, formado no Seminário da Patriarcal de Lisboa e mestre-de-capela da Bahia no século XIX. Essa obra, cujos motetos foram publicados pela Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo e apresentados em concerto em São Paulo, em 1973, trouxe à consciência a necessidade de estudos da música de Semana Santa em contextos globais.
Estudos em cooperações internacionais
Nos estudos e colóquios desenvolvidos a partir de 1974 com musicólogos europeus, a as tradições musicais da Semana Santa no Brasil foi objeto de estudos sob diferentes aspectos. Essas reflexões e análises inseriram-se em projeto brasileiro de desenvolvimento de uma musicologia de orientação cultural dirigida a processos em contextos globais que foi possibilitado pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD). Nos encontros, as considerações partiram de material resultante de pesquisas realizadas no Brasil.
No Instituto de Musicologia de Colonia atuavam professores que se distinguiam pelas suas pesquisas e obras no âmbito da música religiosa, tanto católica, como Karl Gustav Fellerer (1902-1984), como protestante, como Heinrich Hüschen (1915-1983). Entre os temas nos quais eram especialistas, encontravam-se aqueles concernentes à formas e obras da Semana Santa, como os Motetos, Lamentações de Jeremias, Ofícios de Trevas e outros. As pesquisas e os estudos realizados no Brasil forneceram o material para exames e reflexões conjuntas com esses musicólogos.
A partir de 1978, com a fundação do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos da Consociatio Internationalis Musicae Sacrae (Roma), com o seu centro de estudos junto à abadia de Maria Laach, os trabalhos puderam contar com a cooperação mais intensa de teólogos, historiadores eclesiásticos e missiólogos.
Sexta-Feira Santa de Elias Álvares Lobo
A Sexta-Feira Santa de Elias Álvares Lobo adquiriu neste contexto particular significado. À primeira vista, a obra parece não ter maior interesse musicológico pela sua austera simplicidade. Ela assume porém relevância por permitir o estudo da atos levados a efeito no interior e no exterior da igreja na Sexta-Feira Santa já em época marcada pelo movimento de reforma restaurativa iniciado sistematicamente em meados do século XIX.
Ela compreende cantos para a procissão do enterro no interior da igreja e para antes do sermão entoados a três vozes, soprano, tenor, baixa. Para a procissão do enterro, trata dos cantos de lamento Pupili facti sumus, Cecidit corona capit, Defecit gaudium. Para antes do sermão, o Responsorium Sepulto Domino, signatum est monumentum. Para a procissão no interior da igreja, Elias A. Lobo escreveu o canto de Vexilla Regis, hino à cruz de Venantius Fortunatus (ca. 530-609). O hino era cantado nas horas do Domingo de Ramos até o Sábado e, à época de Elias Lobo, também na Sexta-Feira, quando o Santissimo era levado ao altar-mor.
O exame das partes revela que o compositor partiu do modêlo gregoriano na condução melódica. Proveniente e atuando em Itú, E. A. Lobo inseriu-se na tradição carmelitanista dessa cidade e do movimento de reforma religiosa de cunho restaurativo de autoridades eclesiásticas em meados do século e que se intensificou após o Concílio Vaticano I. A obra revela erudição e conhecimento da literatura sacro-musical da época.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.