ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
O Setenário das Dores (Viro perdolens) a partir de pesquisas realizadas no Brasil, foi objeto de estudos musicológicos e culturais desenvolvidos em centros universitários e eclesiásticos europeus desde 1974/75.
Os estudos colóquios inscreveram-se em projeto de desenvolvimento de uma musicologia orientada segundo estudos de processos culturais em contextos globais elaborados no Brasil desde meados da década de 1960. O projeto foi sediado no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia. A partir de 1977,
As sete dores
No Setenário, meditam-se as sete dores de Maria - os mistérios dolorosos. Esses mistérios são rememoradas no dia 15 de setembro, data que teria sido fixada em 1239 pela Ordem dos Servitas ou dos Servos de Maria, atuantes em Florença.
Essas dores são: a profecia de Simeão de que Maria seria transpassada na sua alma (Lucas 2,35); a fuga para o Egito; a perda de Jesus nos seus 12 anos no templo de Jerusalem; o encontro de Maria e Jesus no caminho da cruz; o esperar e o sofrer de Maria aos pés da cruz; a descida da cruz e o segurar no seu colo; e o sepultamento de Jesus. Nas expressões tradicionais, essas 7 estações dolorosas da vida de Maria são consideradas também singularmente, o que também ocorre com as de suas 7 alegrias.
Correspondendo aos estreitos elos com a cruz, o dia que rememora as dores de Nossa Senhora segue à festa da Exaltação da Cruz, comemorada no dia 14 de setembro. A festa da Exaltação da Cruz deve ser distinguida nos estudos de tradições daquela do dia 3 de maio, a da Invenção ou Descobrimento da Cruz, de tanta importância para o Brasil, uma distinção que marcou o calendário na sua estrutura e que foi obscurecida por reformas eclesiásticas mais recentes. Essas modificações recentes não são de relevante significado para os estudos culturais.
A Exaltação da Cruz tem sentidos de sinal de vitória e surge anti-tipologicamente em relação com a imagem da serpente levantada por Moisés (João 3,14-15).
Uma particular consideração deve ser dada à rememoração das Dores em sexta-feiras nas duas semanas do tempo da Paixão, do quinto domingo da Quaresma - domingo da Paixão ou Judica - até o Sábado Santo. A celebração da Semana da Paixão foi prescrita pelo papa Bento XIII em 1727, o que pode explicar o significado dessa veneração no Brasil no século XVIII. Também em sexta-feiras de semanas que sucedem à Páscoa, mais especificamente na quarta sexta-feira - foram as Dores rememoradas - sob outros aspectos - na festa da Compaixão ou das Dores de Maria.
Significado
A atenção dedicada ao Setenário das Dores surge como particularmente relevante para os estudos culturais ibéricos e latino-americanos devido à intensidade da veneração de Nossa Senhora das Dores na Espanha e, em particular, dos países da América Latina colonizados pelos espanhóis.
A veneração da Virgem Dolorosa (Virgen de la Amargura, Virgen de la Piedad, Virgen de las Angustias o La Dolorosa), marca a vida religiosa e cultural de comunidades, regiões e cidades com maior ou menor intensidade. Cidades da Espanha, como Sevilha ou Salamanca, mas também da Itália ou de Malta são conhecidas pelas suas expressões de extrema emocionalidade e aparato dramático da Semana Santa e da veneração de Nossa Senhora das Dores. Esse pêso dado á Paixão no contexto do calendário religioso foi transplantado para regiões colonizadas ou na qual atuaram mais intensamente missionários espanhóis, como no México ou nas Filipinas.
O significado da veneração de Nossa Senhora das Dores para os estudos culturais em geral evidencia-se nas expressões passionais de suas imagens e expressões. A imagem de Maria sofredora, com o coração transpassado por sete flechas, presente em inúmeros altares de igrejas e levada em andores em procissões, sobretudo naquelas da Semana Semana, é uma das expressões de maior dramatismo da cultura de países marcados pelo Catolicismo. A sua veneração dá ensejo a manifestações de compaixões, a choros, atos e gestos também de grande dramaticidade. Essas impressionantes representações e expressões indicam o significado e o efeito de imagens e que levam à compassividade em indivíduos e coletividades.
Apesar do alto significado dos mistérios dolorosos também em Portugal, o Marianismo português é marcado por um acento maior à Conceição de Nossa Senhora, declarada rainha de Portugal e de seus territórios desde o século XVII. No Brasil, esse acento manifesta-se na veneração de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, considerada como padroeira do Brasil e cujo principal centro de romarias é a cidade de Aparecida no vale do Paraíba. Ainda assim, a veneração de Nossa Senhora das Dores é intensa nessa e em outras regiões do Brasil. Várias imagens da Mater dolorosa do passado são de relevante significado histórico-artístico.
Corresponderam à tradição de estudos ibéricos do Instituto de Colonia, marcada pela personalidade e pelos trabalhos de Marius Schneider 819093-1982), importante representante da Musicologia Comparativa que atuara na Espanha e se dedicara ao estudo das tradições ibéricas. Vieram ao encontro de projeto então em andamento sobre as Culturas Musicais na América Latina do século XIX.
Desenvolvimento dos estudos
Os estudos teológicos e de música sacra referentes ao culto mariano nos seus diversos aspectos são de longa data no Brasil. Mudanças de enfoques no seu tratamento resultaram de decorrências do Concílio Vaticano II na década de 1960. No âmbito dos estudos culturais, novas perspectivas se abriram no âmbito de movimento de renovação de perspectivas e procedimentos a partir de cooperações inter- e transdisciplinares iniciado em 1965/6 em São Paulo. A introdução da área de Folclore em cursos de música em conservatórios em 1964 foi acompanhada por reflexões sobre conceituações e objetos de estudos, sobretudo por docentes que também se inseriam na vida religiosa e sacro-musical de irmandades.
Nessas reflexões, considerou-se que a compaixão própria da veneração da Mater dolorosa diz respeito a uma sintonia emocional, à capacidade de sentir e vivenciar sofrimentos por que outros passam, de colocar-se em lugar daquele que sofre, tendo dimensões mentais e psíquicas.
A compaixão que desperta imagens da Paixão e das Dores correlata segundo a lógica doutrinária com a compunção. Tendo sido a morte na cruz um ato de redimir os homens do pecado original, Maria, como soberana, rainha dos céus, medianeira e advogada é invocada para dar amparo àquele que sente as dores dos seus pecados. Essa acepção tem dimensões coletivas, uma vez que Maria é modélo exemplar dos cristãos e corporifica a Igreja. As expressões dessa veneração de Nossa Senhora das Dores são assim de significado para estudos de mentalidades e sócio-psicológicos.
A música, na sua capacidade em mover afetos, adquire particular importância no contexto das sete dores de Maria. O levantamento e estudo de fontes foram desenvolvidos no âmbito do Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão. Na sua orientação dirigida a processos ultrapassadores de divisões entre áreas disciplinares e esferas de consideração nos seus diferentes sentidos, visava a difusão de uma nova maneira de pensar e proceder nos estudos culturais.
Em círculo de estudos constituído no seu âmbito em 1969 e dedicado ao estudo do canto medieval nas suas extensões, continuidades e mudanças no Brasil, desenvolveram-se estudos teológicos e histórico-eclesiásticos sob a perspectiva de processos histórico-culturais. A veneração marcada por alta emocionalidade das Dores e o papel da música na intensificação de sentimentos de compaixão que se relacionam com a compução foi um dos aspectos considerados com especial atenção nas reflexões e estudos.
Em nível superior, o tema foi tratado na Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo a partir de 1972. Foi tema considerado nas áreas de Estética nas suas relações interdisciplinares com a da Etnomusicologia. Foi tratado sob o aspecto geral do significado da compaixão em diferentes contextos culturais e também em trabalhos de observação e pesquisas empíricas. Obras levantadas em arquivos foram comentadas e realizadas pelo então criado Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista.
A partir de 1974, os estudos tiveram continuidade em âmbito internacional. Os setenários das Dores levantados no Brasil foram discutidos no primeiro ciclo de estudos luso-brasileiros realizados em Portugal e na Espanha em 1974, promovidos pelo Centro de Pesquisas Histórico-Musicais e pela área de Etnomusicologia do Instituto Musical de São Paulo.
Esses estudos prepararam aqueles que seriam discutidos no projeto brasileiro de desenvolvimento de estudos culturais e musicológicos em contextos globais sediado no Instituto de Musicologia de Colonia. Marco inicial desses estudos foi um primeiro ciclo de trabalhos realizado em Roma, na Semana Santa de 1975. No âmbito dos estudos, considerou o papel do Papa Bento XIII (1649-1730) na história da veneração de Nossa Senhora das Dores por ter introduzido a sua festa em 1727 (Septem Dolorum Beatae Mariae Virginis).
Aspectos
Nos colóquios conduzidos a partir de fontes brasileiras na Europa, considerou-se com especial atenção duas fontes levantadas em pesquisas realizadas no Brasil.
A primeira dessas fontes da antifona da festa das Sete Dores, entoada como rito de entrada em texto latino: Dolores gloriosae recolentes virginis, Dominum pro nobis passum. Venite adoremus, Venite Adoremus. Pelas suas característiocas, sua condução melódica, girando ao redor de um nota tenor, tratamento sobretudo silábico do texto, similaridades com a tradição do canto litúrgico, caligrafia e uso do termo tiple indica a conservação em acervos ou a permanência na prática de remotas origens, do início do século XVIII ou mesmo do século XVII. Essa antífona pertence aos documentos musicais mais antigos já encontrados no Brasil, podendo-se supor uma origem espanhola da época da União Pessoal, hipóteses essas discutidas em colóquios.
A segunda fonte particularmente considerada com foi obra explicitamente designada como Setenário das Dores, também proveniente da tradição musical do vale do Paraíba. Chamou a atenção dos pesquisadores primeiramente por ser em português, não em latim. Em anos marcados por intentos de substituição da língua latina pelo vernáculo da época pós-conciliar, esse antigo documento de obra cantada em português no século XIX despertou o interesse em círculos voltados à música sacra.
Trata-se de uma composição composta ou atribuída a Manoel da Costa Cabral, músico de família proveniente dos Açores e que desempenhou importante papel na história do vale do Paraíba. Sobretudo pelas características da sua condução melódica e profusão de melismas revelou-se a obra como de extraordinária importância para estudos musicológicos. A sua construção revela ter sido composta por músico de alta capacidade teórico-musical. As relações de texto e música indicam a atenção dedicada à interpretação de sentidos do texto. Entre outros aspectos, salienta-se o emprêgo de movimentos escalares cromáticos.
Desenvolvimentos subsequentes
Os estudos foram desenvolvidos no âmbito do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos da Consociatio Internationalis Musicae Sacra, com sede em Colonia e centro de estudos junto à abadia de Maria Laach. A Abadia Beneditina de Maria Laach, junto ao lago do mesmo nome da região de Eifel, uma dos principais monumentos da arquitetura medieval da Alemanha e mesmo da Europa, é, com a sua biblioteca e o Instituto de Estudos de Ciência da Liturgia Abt von Herwegen, um centro de estudos mariológicos, de história eclesiástica e sacro-musicais em particular do canto gregoriano. A temática foi considerada em outras ocasiões e contextos. salientando-se reflexões encetadas em Malta em sequência à fundacão do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS) em 1985.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.