emblema da Universidade de Colonia com a imagem dos 3 reis magos

ANAIS

Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo

Emblema da Academia Brasil-Europa ABE -Instituto de Estudos da Cultura Musical do mundo de língua portuguesa ISMPS
Portal da Catedral de Colonia
Prof.Dr.Antonio Alexandre Bispo. Universidade de. Colonia. Presidente da Academia Brasil-Europa. Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa ISMPS

Tota pulchra es


BRASIL NA MÚSICA SACRA

MÚSICA SACRA NO BRASIL


PROGRAMA DE ESTUDOS CULTURAIS E MUSICOLOGIA
PELOS 50 ANOS DE TRABALHOS INTERNACIONAIS


Antífona do vale do Paraíba. Séc. XVIII

Tota pulchra es de Elias Álvares Lobo 81834-1901)


COLONIA - MANNHEIM

1975

Vitral da Igreja de S. Gonçalo Garcia e N. Sra. da Conceição. S. Paulo
O mais antigo documento da antífona Tota pulchra es do Brasil

Tota pulchra es é uma antífona mariana da mais alta relevancia para estudos culturais, de visões do mundo e do homem, da musicologia e da filosofia, em particular da estética. Diz respeito a concepções do Belo. 


O texto da antífona Tota pulchra vem sendo considerado sob diferentes aspectos, teológicos, da história eclesiástica, dos estudos comparados da religião, da música sacra, de estudos mariológicos e culturais em geral, em particular naqueles referentes à história e a procedimentos missionários. A antífona é tratada. em vasta literatura e registrada em grande número gravações, cantada e meditada em celebrações, na catequese, orada e refletida em encontros, considerada em simpósios, congressos, aulas e seminários. O seu texto expressa concepções e imagens que não podem deixar de ser consideradas em estudos antropológico-culturais e sócio-psicológicos. 


Tota pulchra es foi uma das antifonas consideradas em pesquisas em musicologia realizadas no Brasil desde a década de 1960 e que tiveram continuidade em nível internacional a partir de 1974/1975. O seu estudo inseriu-se no projeto elaborado no Brasil voltado ao desenvolvimento de uma musicologia orientada segundo análises de processos culturais e, reciprocamente, de estudos culturais de condução musicológica em contextos globais. O projeto foi sediado a partir de 1975 no Instituto de Musicologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de Colonia


Um dos primeiros e principais momentos do desenvolvimento do programa foi ciclo de estudos realizado em março de 1975. Esses estudos foram dedicados a estudos de processos histórico-musicais do século XVIII na Europa nas suas dimensões globais e da recepção de correntes e obras do pré-classicismo centro-europeu no Brasil. Os estudos foram conduzidos a partir de obras de compositores da Escola de Mannheim levantadas em pesquisas realizadas em São Paulo na década de 1960.


O ciclo de estudos em Mannheim foi motivado pela realização do curso Mozart e sua época por Heinrich Hüschen (1915-1983) no Instituto de Musicologia de Colonia.


O texto, de caráter hínico, de louvor da beleza de Maria é entoado em diferentes ocasiões e funções, como expressão aleluiática antes do Evangelho em missas,  sobretudo no contexto das festas da Imaculada Conceição, celebrada no dia 8 de dezembro, uma das mais importantes do calendário religioso, uma das mais celebradas em muitas cidades e regiões marcadas pelo Catolicismo, sobretudo também em Portugal e em regiões marcadas pelos portugueses.


Significado - Canticum Canticorum


A antífona Tota pulchra es adquire primeiramente significado sob o ponto de vista histórico pela sua antiguidade. É um texto que pode ser comprovado em fontes do século IV, sendo porém muito provavelmente de origens mais remotas. Na sua fundamentação bíblica, remete ao Cântico dos Cânticos do Velho Testamento na sua interpretação cristã. Na tradição bíblica, recorre já nas suas primeiras palavras ao Cântico dos Cânticos, no Canticum Canticorum de Salomão: Tota pulchra es, amica mea, et macula non est in te (4,78). Outras de suas expressões fundamentam-se tanto em  escritos do Velho Testamento (Judith 15,9), como do Novo Testamento (Mateus 17,2; Mateus 28,3). Essa recorrência ao Cântico dos Cânticos revela o extraordinário significado da antífona Tota pulchra es para ostudos musicológicos.


Essas suas antigas origens antigas despertam a consciência para a permanência, através dos séculos, de concepções e imagens da mais remota antiguidade. 


Tota pulchra es, Maria

et macula originalis

non est in te.


Vestimentum tuum candidum quasi nix,

et facies tua sicut sol.


Tota pulchra es, Maria,

et macula originalis

non est in te.


Tu gloria Hierusalem,

tu laetitia Israel,

tu honorificentia populi nostri.

Tota pulchra es, Maria.


Tu advocata peccatorum, o Maria,

virgo prudentissima,

mater clementissima,

ora pro nobis, intercede pro nobis

ad Dominum Jesum Christum.


O texto Tota pulchra es, Maria, dizendo respeito a concepções de beleza, adquire assim extraordinário significado para estudos de Estética de condução teórico-cultural e nas suas relações com a Ética e a Antropologia. Somente ela - e Cristo - são plenamente belos por não terem nenhum pecado em si. Essa acepção do que é belo não pode deixar de ser considerada nos estudos culturais, uma vez que diz respeito a fundamentos de acepções de beleza em comunidades de condicionamento cultural católico.


A concepção do Belo relaciona-se aqui com a de pureza. A plenitude de Maria decorre do fato de ter sido concebida de forma imaculada, de não haver mancha do pecado original: et macula originalis non est in te. A plenitude da beleza de Maria é decantada de início, repetindo-se. As palavras do texto oferecem os conceitos e imagens quer devem ser considerados com atenção como condutores dos estudos do belo em Maria, de suas razões e que revela uma linguagem visual que marcou por séculos representações pictórias e plásticas. 


A sua vestimenta é luminosa como a neve, a sua face resplandece como o sol. Essas menções encontram correspondência em representações, em particular também em tradições populares, possibilitando ao observador reconhecer os sentidos do representado, o louvor da plenitude da beleza de Maria. Importante também para os estudos culturais, para a compreensão de expressões e da atmosfera do culto e de festas, que Maria é, nas suas qualidades de beleze e pureza razão de glória, de alegria e honorificação: Tu gloria Hierusalem, tu laetitia Israel, tu honorificentia populi nostri. 


Em texto que se segue, a ela se roga como advogada dos pecadores, virgem e mãe que intercede por todos junto a Jesus Cristo. Essas palavras dirigem-se a Maria já como assunta, soberana, rainha dos céus, ou seja, a uma atualidade a partir da qual toda antífona deve ser compreendida. Aqui evidenciam-se as estreitas relações entre os textos das antífonas marianas, uma vez que diz respeito ao conteúdo de Regina caelis.


A antífona é de significado para estudos concernentes ao visual nos estudos religiosos e culturais. Inúmeros artistas procuraram através dos séculos representar a beleza e pureza de Maria. Neste contexto, lembrou-se de muitas imagens em altares de igrejas  que procuram corresponder a esses critérios do belo e da irradiação luminosa da pureza e que é motivo de alegria. Essas concepções abrem caminho para estudos de condicionamentos culturais de mentalidades e de disposições psíquicas, de percepção de atmosferas e de critérios valorativos de qualidades humanas, em particular da mulher.


Segundo a tradição, teria sido o evangelista Lucas o primeiro que teria pintado a imagem de Maria. Como considerado com historiadores da arte, essa atribuição deve ser considerada com atenção. Essa referência traz à consciência o significado da consideração da linguagem visual de representações de Lucas no contexto dos quatro evangelistas, de seu símbolo e de suas relações com o mundo natural sob múltiplos aspectos e associações.


Beleza e a imagem negra de Maria


Um importante aspecto das reflexões e estudos motivados pela antifona Tota pulchra es disse respeito à plenitude da beleza na imagem negra de Maria. Essa representação de Maria tem dado motivo a interpretações e hipóteses fantasiosas e infundadas. Ela se insere numa antiga tradição imagológica e que se manifesta em várias igrejas dedicadas a Maria na Europa. Os estudos referentes a essa representação tiveram lugar já no início do projeto musicológico e cultural brasileiro sediado em Colonia, na na Igreja da Mãe de Deus Preta  (Scharze Muttergottes) na Kupfergasse de Colonia.


Na sua fundamentação bíblica, essa representaçcão decorre do tipo préfigurativo de Maria no Cântico dos Cânticos, no Canticum Canticorum de Salomão, fonte do Tota pulchra es (4,78). Nele decanta-se a amada, bela e escura, dando-se já a razão dessa tez morena (1,5-1,6): escura sou, porém formosa, ó filhas de Jerusalém (…) /Não olheis para o eu ser escura, porque o sol me queimou (…). 


Significado para Portugal e o Brasil


A veneração de Maria foi intensa na Idade Média em Portugal, país significativamente cognominado de Terra de Santa Maria. Essa intensidade da veneração mariana teve como uma de suas maiores expressões as festas de 8 de dezembro, quando se celebra a sua conceição imaculada. Com os descobrimentos, a festa de 8 de dezembro e sua oitava passaram a ser celebradas em regiões descobertas, tanto no Oriente como no Ocidente. A intensidade dessa veneração, o significado de suas festas e de sua difusão na tradição religiosa foram assim muito anteriores à dogmatização das concepções da Imaculada Conceição no século XIX. 


Um marco fundamental no estudo do Marianismo em Portugal e no Brasil foi a determinação de Dom João IV (1604-1656) ao restaurar a autonomia de Portugal após o longo período da União Pessoal com a Espanha (1580-1640), de que Maria fosse venerada como rainha de Portugal e de territórios e colonias portuguesas em todo o mundo. Essa determinação documenta não só o significado do Marianismo para a identidade portuguesa como também a diferenciações quanto a acentos na cultura religiosa de Portugal relativamente à da Espanha.


A sua veneração vincula-se neste sentido estreitamente a concepções e sentimentos portugueses, a Portugal como país emancipado, à afirmação, à consciência e à identidade portuguesa. Declarada como rainha de Portugal em época de extraordinário significado para a história de Portugal restaurado, explica-se que tenha marcado desenvolvimentos nas colonias e territórios em regiões extra-européias, em especial naquelas inseridas em processos de expansão, de fundação de novas cidades em entradas para o interior de terras à procura de riquezas e, a seguir, em regiões de minas auríferas no século XVIII. 


O significado do marianismo na história e na cultura portuguesa não era de forma alguma recente, remontando aos prímórdios da história cristã da antiga Lusitânia, mas a intensificação de sua veneração à época da Restauração, das entradas em terras e do descobrimento do ouro na região das minas - então na capitania de São Paulo - marcou a vida religiosa, cultural e administrativa de povoados e vilas que se estabeleciam no decorrer de processos de expansão e, em particular naqueles que correspondiam, pelo meio natural, à linguagem de imagens do Marianismo de antigas origens.


A veneração de Maria como rainha tem como fundamento a concepção de ter sido imaculada pelas circunstâncias de sua conceição. Esse significado, intensificando expressões do culto mariano de antigas origens, marcou necessariamente a vida religiosa, cultural e administrativa nas colonias a partir de meados do século XVII, sobretudo de povoados e vilas que se estabeleciam no decorrer de processos de expansão e que correspondiam, pelo meio natural, a uma linguagem de imagens do Marianismo de antigas origens. 


Marianismo nos estudos do século XIX


Deve-se diferenciar, na história do Marianismo em Portugal e no Brasil, entre a intensificação da devoção mariana com a nomeação de Maria como rainha de Portugal e de suas colonias e seus territórios no século XVII e aquela do século XIX, o século da Restauração e suas extensões no XX.


A restauração de Portugal no século XVII foi aquele que libertou o mundo português da soberania de um sistema dos mais sombrios da Europa.  A restauração no século XIX, foi processo de reação a correntes do Esclarecimento, sendo fundamentalmente anti-secularizadores e anti-modernistas, retroativos. No século XX, marco desse movimento restaurador foi o  Motu Proprio de Pio X (1835-1914), promulgado em 1903.


Um dos aspectos tratados em centros de estudos de mariologia na Alemanha  foi o da intensificação da veneração mariana no decorrer do século XIX. Principais expressões do marianismo do século da Restauração foram o Concílio Vaticano I e a dogmatização da Imaculada Conceição, assim como as  aparições de Maria que marcaram a religiosidade popular e a atuação de ordens religiosas. A consideração do restauracionismo na música sacra deve levar em conta a sua inscrição em processos seculares. 


Lembrou-se, nos colóquios realizados na Alemanha, da época que se seguiu ao Congresso de Viena, caracterizada por uma tendência à introversão, à família, à vida retraída no âmbito doméstico, a uma espiritualidade antes reservada e sem maiores expansões expressivas, à singeleza e á pureza de um humor quase que infantil que se manifesta na arte. A antífona Tota Pulchra es es sugere corresponder a esse estado de espírito. 


Sendo copiada e empregada junto a outras antífonas marianas em meados o século XIX mas proveniente de época mais remota, a antífona representaria neste sentido uma retomada de continuidade do passado, uma expressão de sentimentos de cunho nostálgico de restauração de uma época idealizada. Nesse sentido, a antífona adquire significado para o estudo cultura da espiritualidade de uma época que preparou o extraordinário recrudescimento do culto de Nossa Senhora da Conceição Aparecida no vale do Paraíba.


Desenvolvimento dos estudos


Os estudos desenvolvidos no Brasil na década de 1960 - e aqueles conduzidos na Europa a partir de 1975 - inseriram-se em época marcada pelas mudanças decorrentes do Concílio Vaticano II e que suscitaram reflexões e pesquisas.


Os estudos foram desenvolvidos no âmbito de movimento voltado à renovação de perspectivas nos estudos culturais e musicais originado em São Paulo na década de 1960. Nele criou-se o Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão. Nasceu do reconhecimento da necessidade de superação de um modo de pensar e proceder segundo áreas definidas por categorizações de objeto de estudos, de diferenciações entre esferas sob diversos aspectos, defendendo um direcionamento da atenção a processos ultrapassadores de separações e fronteiras. Essa orientação foi por natureza inter- e transdisciplinar, interrelacionando, nos estudos musicais, estudos históricos baseados em fontes e estudos sociais e culturais empíricos. 


As antífonas marianas, entre elas a Tota Pulchra es, foram estudadas a partir do repertório gregoriano no círculo de estudos de canto medieval e de música sacra em geral do Centro de Pesquisas em Musicologia, tendo-se então fundado o Coral Gregoriano de São Paulo. Tanto a antífona gregoriana como aquelas levantadas em pesquisas foram cantadas em missas e concertos. Em nível superior, foram tratadas em cursos de Estética e Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo a partir de 1972.


No âmbito dos estudos culturais empíricos, os estudos foram conduzidos nas suas relações com a festa da Imaculada Conceição, celebrada no dia 8 de dezembro, quando a antífona é cantada nas Vésperas. O seu texto refere-se à concepção imaculada de Maria por Ana e diz respeito a uma veneração e a uma festa de extraordinário significado para Portugal, para o Brasil e para outras regiões do mundo marcadas pelos portugueses. 


Essa veneração da conceição de Maria -  ou de Nossa Senhora da Conceição -  de antigas proveniências, foi intensificada com a proclamação de Maria na sua imaculada conceição como rainha de Portugal quando da Restauração de Portugal após o sombrio período de União Pessoal com a Espanha no século XVII. A Nossa Senhora da Conceição foram não só devotadas sés em antiga tradição catedralícia, como também igrejas e localidades, sobretudo aquelas em regiões marcadas por águas, rios, lagos e mar, determinando a cultura de muitas cidades e regiões, entre elas o vale do Paraíba e o do Tietê em São Paulo.

 

Em encontros de pesquisadores do Museu de Artes e Técnicas Populares da Associação Brasileira de Folclore, esses estudos foram considerados nas suas relações com expressões do culto mariano em tradições populares e, em particular daqueles considerados como sincretísticos. Para além de trabalhos empíricos, considerou-se sobretudo a tradição portuguesa da antiga imagem da sereia, tratada por diferentes autores em várias publicações. 


No âmbito dos estudos musicológicos, as antífonas marianas e, entre elas a Tota pulchra es foram objeto de particular atenção de grupo de trabalho dedicado ao Gregoriano e à música sacra em geral sob o aspecto dos estudos culturais criado no Centro de Pesquisas em Musicologia em 1969. Os estudos foram realizados em estreitas colaborações com pesquisadores da Faculdade Sedes Sapientiae de São Paulo e do Studium Theologicum do Paraná. Em pesquisas de acervos e arquivos, as fontes levantadas passaram a ser estudadas nos seus fundamentos teológicos e na sua contextualização local e regional.


O mais antigo documento foi encontrado em pesquisas realizadas no vale do Paraíba em São Paulo. A veneração de Maria na sua concepção sem pecado original e como rainha dos céus marcou desenvolvimentos religioso-culturais, sociais e urbanos de cidades da região. Manteve-se através dos séculos, ultrapassando a época colonial, adquirindo outra referenciação nacional e intensificando-se com o movimento de restauração católica do século XIX. A maior expressão da veneração mariana é aquela de Nossa Senhora da Conceição, rainha de Portugal e seus territórios à época colonial e soberana e padroeira do Brasil como país independente, culto centralizado no maior centro de romarias do país, na cidade que traz o seu nome, Aparecida, anteriormente pertencente a Guaratinguetá


Entre elas, salientou-se sessão e concerto á luz de velas realizado pelo Centro de Pesquisas em Musicologia no dia 8 de dezembro de 1970 na igreja de Nossa Senhora da Conceição e São Gonçalo Garcia em São Paulo. Nela, em pinturas e vitrais, Maria é representada de forma correspondente ao texto do Tota pulchra es, envolta em vestimenta como neve, irradiando a face como sol decantados no texto, denotando o restauracionismo jesuítico de fins do século XIX e início do XX.


Esses estudos  foram conduzidos, em nível superior, nas áreas de Estética e Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo, matérias instituítas em 1972 e que foram tratadas em estreito relacionamentos interdisciplinares. Os educadores que deviam receber formação em cursos que levavam à Licenciatura, deviam ser preparados para reconhecer e tratar de condicionamentos culturais de seus alunos na diversidade étnica e cultural de contextos sociais e processos urbanos. Paralelamente a aulas expositivas, deviam realizar trabalhos de pesquisa nos seus próprios meios de vida e atuação. Vários estudos foram dedicados a concepções, imagens, música e práticas de cultos considerados sincretísticos, uma vez que os educadores se confrontavam nas suas classes com grande número de alunos inseridos nessas tradições, sendo que mesmo alguns dos educadores os praticavam. 


Em 1972, representações de Maria na sua plenitude nessas expressões religiosas tradicionais foi estudada em estudos imagológicos levados a efeito em Salvador na Bahia. Esses estudos teriam prosseguimento em trabalhos de pesquisas em candomblé e umbanda desenvolvidos na área de Etnomusicologia.


A mais antiga fonte


Uma antífona Tota Pulchra es da tradição musical do vale do Paraíba é documento de particular relevância para estudos musicológicos no Brasil. Essa antífona foi e deve ser considerada em conjunto com outras antífonas marianas encontradas em acervos do vale do Paraíba e que constituem um conjunto de obras de mais antiga proveniência da tradição regional. As partes a indicação de um músico de sobrenome Tolledo e que, apesar de todas as incertezas, podem ser vistas como indicação de copista ou proprietário, um nome que relembra sacerdote influente em cidades da região e cujo nome encontra-se registrado em outras obras. A obra, cultivada em meados do século XIX, é de origem muito mais remota e pode ter sido copiada de original ou de cópias de uso em outras cidades, como Taubaté e Guaratinguetá.  Pertenceu à tradição de várias cidades da região, como São Luís do Paraitinga, Lagoinha e Cunha.


A antífona Tota pulchra es, pelo seu texto, suas características estilísticas, assim como pela caligrafia de partes mais antigas, demonstra estreitas afinidades com a antífona Regina Coeli e os cantos Resurrexit Dominus e Surrexit Dominus vere também pertencentes ao repertório da região e que, apesar de todas as incertezas, podem ser situados no início do XVIII ou mesmo no século XVII.


Sob o aspecto da linguagem musical, essa antífona chamou a atenção desde o início dos estudos pela construtividade que se revela na sua linha melódica. Essas linguagem musical revela similaridades com a de outras antífonas provenientes da região e indicam uma mesma autoria. As repetições de figurações melódicas em diferentes alturas do texto Tota pulchra es, a sequência de incisos descendentes e os staccati são alguns dos aspectos da ordenação da melodia e do tratamento do texto que indicam afinidades e revelam qualidades e conhecimentos do compositor, assim como a sua atenção aos sentidos do texto.


A antífona adquiriu assim desde o início interesse sob o aspecto da psicologia social. A obra serviu, pela clareza de sua ordenação, a análises em cursos de Estruturação Musical e Estética conduzidos em relações com a Etnomusicologia. Essa simplicidade favorece a memorização e a transmissão oral,  o que faz com que essa antífona se situe entre esferas do erudito e o popular. 


De forma alguma deve ser essa obra desvalorizada pela sua singeleza. Justamente essa simplicidade foi reconhecida nas reflexões então encetadas como expressão do marianismo que implica em concepções, imagens e estados de espírito e psíquicos marcados pela beleza e pureza de Maria. O tratamento musical do texto, correspondendo a seus sentidos, expressa uma alegria ingênua, pura, correspondendo ao júbilo do alleluia.


Do ponto de vista dos estudos culturais, salientou-se o significado do Tota pulchra es sob a perspectiva da imagem e como modêlo máximo da mulher. Lembrou-se que, segundo a tradição, teria sido o evangelista Lucas o primeiro que pintou a imagem de Maria. Inúmeros artistas procuraram através dos séculos representar a beleza e pureza de Maria. Neste contexto, lembrou-se de muitas imagens em altares de igrejas brasileiras que procuram corresponder a esses critérios do belo e da irradiação luminosa da pureza e que é motivo de alegria. Essas concepções abrem caminho para estudos de condicionamentos culturais de mentalidades e de disposições psíquicas, de percepção de atmosferas e de critérios valorativos de qualidades humanas, em particular da mulher.


Tota pulchra es e correntes restaurativas


Nas análises, considerou-se essa antífona remontante ao século XVIII emm cotejos com a composição Tota pulchra es Maria de Elias Álvares Lobo, um dos principais representantes da história cultural de Itú, um dos centros do restauracionismo católico no interior de São Paulo do século XIX.


O significado dessa composição reside no fato de ser um documento da intensificação do culto mariano, em particular da Conceição de Nossa Senhora no âmbito dos intentos reativos eclesiásticos, de reespiritualização da sociedade em região marfada por extraordinário desenvolvimento material no século XIX. A composição dá testemunho do significado do culto de Maria Imaculada em época na qual se preparou e proclamou o dogma da Imaculada Conceição no Concílio Vaticano I, conclave marcado pelo anti-Modernismo. 


Diferenciando-se de antífonas marianas de origem mais remota levantadas no vale do Paraíba, essa composição de Elias Álvares Lobo revela outras características na sua linguagem musical, mas também é marcada pela singeleza quase que infantil da sua configuração melódica, correspondendo também aos intuitos de cunho educativo, de formação religiosa de famílias e da mulher que caracterizaram o movimento restaurativo.


A obra é marcada pela condução melódica em terças e do seu singelo tratamento harmônico. Após uma breve introdução, o Tota pulchra es é entoado repetidamente e em crescendo a duas vozes. Estas correspondem de início ao baixo e à voz intermediária dos acordes, passando a seguir a ser conduzidas paralelamente. O compositor permite que se reconheça o caminho que seguiu através da grafia, empregando notas de menores dimensões e que possivelmente poderiam ser omitidas. O acompanhamento instrumental sugere que a obra tenha sido composta ao piano. Na expressão seguinte, o et macula originalis non est in te, a obra intercala tutti a três vozes e duos, mantendo-se a condução em terças no acompanhamento.


A antífona Tota pulchra es era cantada em Itú de acordo com o uso consuetudinário sobretudo nas vésperas da festa da Imaculada Conceição, celebrada no dia 8 de dezembro. Elias A, Lobo inseriu-se na tradição musical dessa cidade, marcada pela espiritualidade carmelitana - o que se expressa no próprio nome do compositor- e pelo culto mariano na igreja matriz, dedicada à Purificatio Beatae Mariae Virginis (Candelária), assim como na igreja fundada por comunidade devotada a Nossa Sra. do Patrocínio. 


Justamente nessa igreja e nas suas dependências foram instaladas as Irmãs de São José, religiosas vindas da França a convite do Arcebispo de São Paulo e que foram importantes agentes de intentos de reforma do clero, de costumes e de formação religiosa de novas gerações segundo intentos restauracionistas. Sendo o ensino feminino segundo esses critérios de correção de comportamentos principal tarefa das irmãs de S. José, o texto da antífona Tota pulchra es assume necessariamente particular significado. Nela expressam-se concepções fundamentais referentes a Maria como modêlo máximo da vida feminina. 


Desenvolvimentos subsequentes


Os estudos de expressões marianas que teve como um de seus marcos o ciclo realizado em Colonia e Mannheim em 1975, tiveram continuidade nos anos que se seguiram. Foram apresentados e discutidos a partir de fontes levantadas no Brasil em colóquios de doutoramento no Instituto de Musicologia de Colonia e que levaram a defesa de tese em 1979.


O tratamento de temas mariológicos sob a perspectiva dos estudos culturais desenvolveu-se em estudos e cooperações realizados em Maria Laach, histórica abadia beneditina situada às margens de um lago na região vulcânica de Eifel, um dos centros da veneração de Maria e dos estudos marianos na Alemanha. Na biblioteca e em colóquios com monges e estudiosos do Instituto Abt von Hervewegen, considerou-se em Maria Laach a literatura teológica e histórico-religiosa especializada. 


Na esfera da irradiação dessa abadia instalou-se em 1977 centro de estudos do Instituto de Estudos Hinológicos e Musicológicos vinculado à Consociatio Internationalis Musicae Sacrae e ao Istituto Pontificio di Musica Sacra de Roma. Conduzidos em estreitas relações com o projeto musicológico elaborado no Brasil, os estudos foram desenvolvidos no departamento de Etnomusicologia. Os estudos do Tota pulchra es no âmbito da Etnomusicologia foram marcados por uma particular atenção a cultos sincretísticos, com a participação observante em concentrações umbandísticas em São Paulo e em práticas religiosas na Bahia.


Os estudos das antífonas marianas foram de fundamental sitnificado no planejamento e realização do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira realizado em São Paulo, em 1981, no âmbito do qual fundou-se a Sociedade Brasileira de Musicologia. Esses históricos documentos das antífonas foram a seguir considerados em conferência internacional realizada no Museu da Música de Mariana e que deviam ser incluídos na edição de uma Monumenta então projetada. 


Após a fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical no Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS), em 1985, o estudo do marianismo sob o aspecto dos estudos culturais em contextos globais amplicou-se a outras regiões marcadas pela presença portuguesa, na África e no Oriente. As antífonas marianas foram consideradas no II Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira  dedicado ao tema Tradições Crisãs e Sincretismo no Brasil, realizado na região do Reno em 1989. Foram tratadas em encontros, conferências, aulas e seminários nos anos que se seguiram, salientando-se aqueles realizados nas universidades de Colonia e Bonn a partir de 1997.




ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil











Os textos considerados neste programa são relatos suscintos   de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.