ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
Tractus foi um dos temas considerados na Europa em projeto que teve como objetivo contribuir ao desenvolvimento de estudos culturais a partir da música e, reciprocamente, de uma musicologia orientada segundo processos culturais em contextos globais. Foi eaborado no Brasil e conduzido a partir de fontes levantadas em pesquisas de arquivos e de campo desde a década de 1960. O projeto foi sediado no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia e desenvolvidos em cooperações com pesquisadores de várias instituições universitárias e eclesiásticas do Brasil e da Europa. Marco inicial dos trabalhos foi o I ciclo de estudos culturais e musicológicos brasileiros realizado em Roma na Semana Santa e Páscoa de 1975.
Significado
O Tractus, um canto de teor e sentidos graves, um canto de teor salmódico ou um salmodiar em refrão, pertence na estruturação da missa ao Proprium, ao conjunto das partes que variam de acordo com o sentido de dias e festas do calendário. O Tractus, recitado ou cantado, substitui o Alleluia após o Gradual entre a Leitura e o Evangelho na época da Quaresma, da Septuagesima - 70 dias do ano eclesiástico e 9 domingos antes da Páscoa - quanto não se entoam cantos de júbilo ou de alegria.
O Tractus Cantemus Domino é cantado nas Laudes nas Matinas da Quinta-Feira da Semana Santa. Tem sentidos sérios, severos, sendo cantado em atos penitenciais e também em missa de defuntos. Uma das hipóteses quanto às suas origens seria de que, no século VI, teria sido substituído no Proprium em grande parte do ano pelo canto do Aleluia, restando o Tractus na época quaresmal, quando não se entoa o Aleluia.
Já as palavras iniciais do Cantemus Domino revelam o significado desse Tractus para os estudos musicológicos concernentes ao canto, à exortação do cantar no plural, coletivo, da comunidade, povo ou nação. A expressão Cantemus Domino não deve porém dar margens a interpretações inadequadas a partir de associações que não correspondem aos sentidos do Tractus.
Nas reflexões concernentes ao Tractus Canemus Domino considerou-se o significado da linguagem visual. O texto recorda a travessia do povo de Israel pelo Mar Vermelho, quando cavalos e cavaleiros do Egito foram submersos ou projetados no mar. Canta-se ao Senhor como condutor, protetor e salvador. O Salvador é decantado como guerreiro. É o canto de Miriam, também conhecido como canto de Moisés (Exodus 15:1-3)
Cantemus Domino :
gloriose enim honorificatus est,
equum et ascensorem proiecit in mare.
Adiutor et protector
factus est mihi Dominus in salutem.
1
Hic Deus meus, et honorabo eum:
Deus patris mei, et exaltabo eum.
2
Dominus conterens bella: Dominus nomen est illi.
ou
Fortitudo mea et laus mea Dominus,
et factus est mihi in salutem:
iste Deus meus, et glorificabo eum;
Deus patris mei, et exaltabo eum.
Dominus quasi vir pugnator
omnipotens nomen ejus.
Questionamentos
O conceito Tractus levanta questões. As tentativas propostas para a sua explicação eram - e são - insatisfatórias. O termo, derivado do latim trahere - puxar, tirar, arrastar - corresponder à concepção do Tractus como canto puxado, arrastado (cantus tractus). Segundo outros, significaria um modo de cantar tractim, numa só puxada, pelo fato de ser entoado diretamente, sem ser interrompido pelas respostas do refrão, outros ainda, o explicam pelo fato do livro litúrgico ser trazido de um lado para o outro do altar durante a celebração. do lado da Epístola para aquele do Evangelho, e assim para ali trazido (lat. trahere).
A atenção aos sentidos e à linguagem de imagens da orientação teórico-cultural podem oferecer elucidações. A explicação considerada para o termo foi resultante do teor do Tractus Cantemus domino e de sua linguagem de imagens. O texto refere-se à saída do povo de Israel do Egito, à travessia do Mar Vermelho, guiado por Moisés, sendo assim conduzido, puxado ou trazido na travessia das águas.
O Tractus Cantemus Domino tem características de um hino àquele que conduziu os judeus para fora do cativeiro do Egito e derrotou os egípcios e seus cavalos nas águas do mar. Em interpretação cristã, essa decorrência é vista sob o aspecto imagológico como pré-figuração da saída das águas no batismo e do mar vermelho do sangue de Cristo na sua morte na cruz para a remissão dos homens. O puxar, arrastar, tem sentidos graves, o do doloroso ser retirado, extraído das águas do mundo material ou carnal, de morte ou mortificação no caminho para fora das águas, do sêco.
O significado do Tractus Cantemus Domino, sob o aspecto dos estudos culturais foi reconhecido sobretudo sob o aspecto da imagem de Deus como guerreiro, condutor que puxa, arranca o povo das águas e o retira da escravidão no Egito. Essa linguagem visual pode ser constatada em imagens de cultos religiosos populares no Brasil, em geral designados como sincretísticos.
Desenvolvimento dos estudos
O Tractus do repertório gregoriano foi tratado em estudos de Canto Gregoriano e música sacra em geral promovidos pelo Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão a partir de 1968 e realizados em cooperações com outras instituições, entre elas a Faculdade Sedes Sapientiae e o Instituto Pio X do Rio de Janeiro e São Paulo. Esses estudos foram precedidos por encontros de gregorianistas e pesquisadores levados a efeito em cursos internacionais de música.
Os estudos distinguiam-se daqueles realizados em outras instituições ainda marcadas pelo movimento gregoriano pré-conciliar por terem uma orientação teórica não-confessional, dirigida a análises de processos culturais, objetivo do movimento de renovação dos estudos iniciado em 1966.
Concomitantemente com estudos teóricos, realizaram-se estudos em acervos e arquivos. Nessas pesquisas, pôde-se levantar obras compostas para o Tractus, em particular para os ofícios de Semana Santa. Em diálogos conduzidos em Minas Gerais, em 1970, o tema foi considerado em diálogos levados a efeito em São João del Rei, assim como em consultas de arquivos, entre êles no Museu de Música de Mariana, então em fase de instalação.
Foco: Século XIX
Uma questão que se levantou foi o papel desempenhado por esses sentidos do Tractus no âmbito do movimento restaurativo do século XIX. A particular atenção ao século XIX deveu-se, no Brasil e na Europa à atualidade de questões e preocupações perante as mudanças litúrgico-musicais em concepções e práticas nos anos que se seguiram à reforma da Semana Santa e, sobretudo, ao Concílio Vaticano II.
Em 1975, ano em que se celebrou os 450 anos de G. P. da Palestrina, concepções e práticas do movimento de restauração musical no século XIX e suas extensões no XX passaram a ser revistas e relativadas. Esse debate os estudos sacro-musicais correspondeu aos intentos de reconsideração do século XIX na musicologia, também em países extra-europeus. Em andamento encontrava-se um projeto editorial dedicado às Culturas Musicais na América Latina no século XIX, coordenado na área de Etnomusicologia do Instituto de Musicologia de Colonia.
Como exemplo, tratou-se do Tractus na Semana Santa de Elias Álvares Lobo proveniente de Itú, um dos centros da restauração em São Paulo.
A mais antiga fonte documental
Uma das obras levantadas em pesquisas no Brasil que foram particularmente consideradas foi o Tractus Cantemus Domino para o Sábado Santo proveniente do vale do Paraíba. Essa obra, de autor desconhecido, fêz parte do repertório de várias cidades no século XIX. Pela condução da linha melódica nas suas estreitas relações com o texto, conduzida em intervalos conjuntos, sem maiores expansões, com longos valores, corresponde ao sentido do Tractus nos seus sentidos de arrastar e arrastamento, do tirar das águas.
Desenvolvimentos posteriores
Os estudos tiveram continuidade na área da Etnomusicologia do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos da Consociatio Internationalis Musicae Sacrae (Roma), com centro de estudos junto à abadia beneditina de Maria Laach, fundado em 1977. As fontes levantadas no Centro de Pesquisas em Musicologia na década de 1960 no Brasil foram tratadas em outras ocasiões a partir da fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS) em 1985. O Tractus foi considerado em conferências e cursos superiores dedicados à temática Música e Religião, assim como à Hermenêutica conduzidos nas universidades de Colonia e Bonn.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.