ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
Três horas da agonia ou Três horas de agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo é a designação de obras escritas para um ato devocional da Paixão que foi intensamente praticado em Portugal, no Brasil e em outros países, latinos e latino-americanos. Corresponde às composições designadas como Sete Palavras na Cruz.
As obras para as Três horas da agonia constituem uma das expressões mais pungentes da Semana Santa que, com as semanas que a precedem, sobretudo após o quinto domingo da quaresma - o Domingo da Paixão (Dominica de passione), também conhecido como Judica segundo as primeiras palavras do seu Introito (Salmo 43,1) culmina na Sexta-Feira Santa. Esta, aberta no Domingo de Ramos, com os seus ofícios e procissões, marca intensamentea vida religiosa, cultural e musical de várias cidades.
A consideração dessa prática é de significado não só para estudos da história eclesiástica e da música sacra em geral, como também para aqueles de tradições culturais, da história regional e local assim como para reflexões e pesquisas de mentalidades e demopsicologia.
Comunidades e localidades da Península Ibérica e da América Latina, mais cientes de suas tradições religiosas, manifestam, no aparato e expressividade dessas solenidades, litúrgicas, paraliurgicas e atos devocionais particulares e de irmandades ser a Semana Santa ponto alto do calendário religioso. Cidades da Espanha como Sevilha ou Salamanca, são mundialmente conhecidas pela pompa fúnebre de ofícios e as tradições da Semana Santa. Esse significado pode ser constatado e vivenciado no Brasil ainda em cidades como São João del-Rei e outras de Minas Gerais, do Nordeste do Brasil, da Bahia, mas também em São Paulo.
A dramaticidade inerente aos fatos rememorados e as expressões emotivas não só impressionam como também movem afetos, emocionam, marcando de forma passional a vida de indivíduos e coletividades. Elas fomentam a compaixão e a compunção, a participação interna nos sofrimentos do crucificado, assim como a intenção de trazer a própria cruz na existência, determinando estados de espíritos e psíquicos que marcam concepções e modos de vida.
As expressões passionais que se evidenciam nas imagens, têm o sentido não o de representar ou simbolizar, mas o de atuar no interior daqueles que as contemplam, fomentando essa co-participação emocional no sofrimento.
As imagens de Nossa Senhora das Dores, da Mater dolorosa, altamente veneradas, levam à empatia com o sofrimento da mãe que padece as sete dores na sua vida e que culminam com a crucificação de seu Filho. Nessas formas de veneração mariana, a mãe que é venerada como soberana, rainha de Portugal e padroeira do Brasil, é medianeira, é aquela que intercede pelos homens junto ao Filho Deus.
Nas Três horas da agonia, o compadecimento é causado mais imediatamente pela visão de Cristo na cruz. A música, na sua capacidade de mover afetos, qualidade já salientada pelos antigos teóricos, desempenha compreensivelmente importante papel nas expressões passionais, emotivas e pungentes da Paixão.
Desenvolvimento dos estudos
Os estudos culturais das Três horas da agonia iniciaram-se na década de 1960. Partiram de sua prática na igreja do Espírito Santo de São Paulo, situada no bairro da Bela Vista, marcada na sua história pela imigração açoriana. Na vida sacro-musical dessa igreja, assim como de outras irmandades de São Paulo atuava Edgard Arantes, cantor professor e pesquisador, professor Folclore, área de estudos introduzida no currículo de conservatórios em 1964. Desde esses inícios, os estudos tiveram caráter interdisciplinar, abrangendo estudos de fontes e de tradições.
Como um dos participantes do movimento Nova Difusão, iniciado em 1966 e colaborador do seu Centro de Pesquisas em Musicologia, E. Arantes possibilitou o conhecimento e o estudo de obras conservadas e praticadas em diferentes irmandades de São Paulo. Esse movimento tinha como objetivo difundir um novo modo de pensar, procurando renovar perspectivas e procedimentos nos estudos culturais e musicais a partir de um direcionamento da atenção a processos ultrapassadores de separações de esferas em diferentes sentidos, de áreas consideradas como eruditas ou populares, de separações entre grupos sociais, étnicos ou determinados por outros critérios.
Três horas da agonia de Modesto Tavares de Lima
No estudo da vida musical na igreja do Espírito Santo, destacou-se Rossini Tavares de Lima, Professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, sucessor de Mário de Andrade e diretor do Museu de Artes e Técnicas Populares da Associação Brasileira de Folclore, então inspetor pelo Estado da instituição-sede do Centro de Pesquisas em Musicologia.
Rossini Tavares de Lima provinha de uma família com tradições musicais, sendo que vários de seus membros desempenharam papel relevanta na história da música e do ensino no interior do Estado na primeira metade do século XX. Pelo seu intermédio tomou-se conhecimento da obra Três horas da agonia de Modesto Tavares de Lima, escrita para a igreja do Espírito Santo de São Paulo, com data de 24 de março de 1917, em anos da Primeira Guerra Mundial. Procedente do interior do Estado de São Paulo, atuante em Itapetininga e outras cidades, esse compositor e professor documenta com essa obra a difundida prática tradicional das Três horas da agonia em igrejas do interior.
Nas análises da obra, constatou-se primeiramente o alto nível da linguagem musical, singularmente avançada e complexa no tratamento tonal e harmônico, com conduções cromáticas, enarmonias inesperadas e dissonâncias, o que distinguia a obra de muitas outras do repertório sacro-musical da época.
Nas reflexões, levantou-se a razão dessas características da obra e que evidentemente eram decorrentes do texto tratado. As Três horas de agonia surgiram assim como documento de extraordinário significado para estudos relativos a processos que, atingindo limites da linguagem harmônico-tonal, leveram a novas e complexas estruturações e, por fim, à atonalidade.
Esses estudos passaram a exigir pesqisas mais aprofundadas de obras devotadas às Três horas da agonia. Esse intento levou à consideração da obra sob o aspecto teológico e da história sacro-musical em círculo voltado ao Gregoriano e à música sacra em geral sob o aspecto de processos culturais no âmbito do Centro de Pesquisas do movimento Nova Difusão. Tratava-se de levantar obras mais antigas, no sentido de melhor situar a composição de Modesto Tavares de Lima e salientar as suas avançadas tendências estéticas.
Em nível superior, a obra foi considerada na área de Estruturação e Estética, assim como de Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo a partir de 1972. A atuação de membros da família Tavares de Lima tanto na composição, no ensino como na pesquisa cultural empírica favorecia o tratamento do tema a partir de perspectivas interdisciplinares.
Em âmbito internacional, os estudos tiveram continuidade a partir de 1974/75 na Europa. A partir da Universidade de Colonia, renomado centro sacro-musical europeu, os trabalhos foram aprofundados em cooperações com musicólogos portugueses e alemães. Tratava-se, entre outros aspectos, de constatar a prática das Três horas da agonia em Portugal e nas ilhas, em particular nos Açores, assim como em outros países latinos, sobretudo na Itália.
Com a fundação do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos da Consociatio Internationalis Musicae Sacrae (Roma), com centro de estudos junto à Abadia de Maria Laach, os estudos de sentidos teológicos e de história religiosa passaram a ser aprofundados tendo-se em vista a atualidade de questionamentos referentes ao desenvolvimento de uma música sacra adequada culturalmente a diferentes contextos culturais extra-europeus.
Três horas de agonia de Elias Álvares Lobo
Os trabalhos desenvolvidos em cooperações internacionais partiram de obras levantadas anteriormente no Brasil. Entre elas, dedicou-se particular atenção as Três horas de agonia de N. Sr. J. Christo de Elias Álvares Lobo (1834-1901), de 1867. O compositor tratou as sete palavras na cruz em obra escrita para coro a vozes, 2 violinos, viola, cello, flauta e tímbales. Apesar do seu acompanhamento instrumental, nela constata-se uma simplicidade muito maior da linguagem musical e outras qualidades nas suas expressões emotivas do que aquela mais tardia de Modesto Tavares de Lima, escrita em 1917.
A obra pode ser considerada a partir da inserção do compositor em contexto religioso-cultural marcado pelo restauracionismo eclesiástico do século XIX. E. A. Lobo foi o mais renomado e influente músico de Itú, cidade que se tornou um dos principais centros da reforma litúrgico-musical, educativa e de costumes de São Paulo no século XIX.
As expressões visuais e musicais da Paixão, fomentando a compaixão e a compunção, à participação no sofrimento daquele que teria dado à vida pelos pecadores, vinha ao encontro desses intentos restaurativos da vida religiosa e cultural, do clero e da reeducação da sociedade. Estes, correspondendo às tendências anti-modernistas da Igreja, combatiam a secularização através do ensino religioso. O despojamento das igrejas, com altares e imagens veladas, correspondia ao estado de espírito despojado de extroversões, de comportamento modesto e interiorizado preconizado pelas autoridades e pelos religiosos europeus trazidos para o Brasil para atuarem nessa restauração religiosa e de costumes.
ao programa Brasil na música sacra / música sacra no Brasil
Os textos considerados neste programa são relatos suscintos de estudos que vem sendo desenvolvidos em âmbito internacional nos últimos 50 anos a partir de fontes levantadas em pesquisas no Brasil desde 1965. Consideram somente alguns de seus aspectos, tratados de forma sumária. Procurm apenas oferecer uma visão geral de questões tratadas em estudos, encontros e colóquios que antecederam defesa de tese apresentada na Universidade de Colonia em 1979 e desenvolvimentos que a ela se seguiram. Neles mencionam-se obras que não puderam ser publicadas devido a restrições quanto a número de páginas impostas para a sua edição alemã. As fontes musicais encontram-se no Brasil, tendo sido tratadas no Exterior a partir de fotocópias. Essas fontes estão sendo estudadas e deverão ser publicadas por pesquisadores vinculados ao centro de estudos que representa o ISMPS e a ABE no Brasil (IBEM). Após a sua publicação, o acervo estará à disposição de outros pesquisadores. No presente, informações sobre o acervo e cópias de materiais não podem ser fornecidas.